terça-feira, 25 de junho de 2019

CESSE TUDO QUE A ANTIGA MUSA CANTA

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Ando há dias para o fazer e tenho hesitado pela singela dúvida de não saber se um texto com mais de 2 mil palavras "cabe" num blog do tipo deste. Ainda assim, arrisco porque é obrigação fazer o que está ao alcance de cada um para divulgar um discurso notável que dá que pensar. Falo da intervenção de João Miguel Tavares no 10 de Junho.
Foi assim;
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“Eu vivi e cresci a 100 metros do local onde me encontro, ali mesmo, no cimo da Avenida Frei Amador Arrais. Foi nessa casa que habitei até fazer aquilo que a maior parte dos portalegrenses faz após acabar o secundário: deixar a cidade para ir estudar fora, na universidade. Boa parte dos portalegrenses, infelizmente, já não volta a viver aqui. Eu não voltei. Mas aquela será sempre a minha casa. E esta foi, é e será sempre a minha cidade.

Tenho a honra de ser o primeiro filho da democracia a presidir às comemorações do 10 de Junho  Não sei o que é viver sem liberdade. Devo ao Portugal democrático e ao Estado português boa parte daquilo que sou. Sou filho de dois funcionários públicos. Fiz o ensino básico e secundário numa escola pública. Licenciei-me numa universidade pública.

Portugal não falhou comigo. Permitiu que um simples estudante de uma cidade do interior, sem qualquer ligação à capital e às suas elites, fosse subindo aos poucos na vida e chegasse até aqui.

O meu crescimento acompanhou o crescimento da democracia portuguesa.

Vi o quanto o país mudou.

Até ao final da década de 90, Lisboa estava a mais de quatro horas de autocarro de Portalegre, e a essa distância física correspondia uma ainda maior distância cultural. Os livros eram poucos e vendiam-se nas papelarias; o cinema só funcionava ao fim-de-semana; as bandas que nós queríamos ouvir não passavam por cá.

Mas o país progredia, e eu via-o progredir. Os meus pais estudaram mais anos e tiveram mais oportunidades do que os meus avós. Eu estudei mais anos e tive mais oportunidades do que os meus pais.

Como acontecia em tantas casas, a minha família investia parte do salário a comprar livros e enciclopédias que chegavam pelo correio, a prestações. Esses livros representavam o conhecimento e a educação que as famílias ambicionavam para os seus filhos.

Os pais lutavam por isso – lutavam menos por eles, do que pelas suas crianças, para que elas tivessem uma vida melhor, estudassem, fossem “alguém”. Os seus filhos chegariam às universidades. Estudariam dezasseis, dezassete, vinte anos, se fosse preciso. Viajariam mais. As suas férias não estariam limitadas aos 15 dias em Albufeira. Seriam grandes. Seriam felizes. Seriam europeus.

A geração dos meus pais sacrificou-se para que os filhos tivessem o que eles nunca tiveram. Mas é possível que eles tenham tido aquilo que mais nos tem faltado nos últimos vinte anos: um objectivo claro para as suas vidas e um caminho para trilhar na sociedade portuguesa.


Os portugueses lutaram pela liberdade em 1974. Lutaram pela democracia em 1975. Lutaram pela integração na Comunidade Europeia nos anos 80. Lutaram pela entrada na moeda única durante a década de 90.

Não é fácil saber por que é que estamos a lutar hoje em dia.

É nessa dificuldade que repousam tantas das nossas angústias.

As pessoas de hoje não são diferentes das de ontem: enquanto indivíduos, continuamos a amar, a sofrer, a chorar, a rir, hoje como sempre. Boa parte de nós talvez julgue mesmo que a política é somente um cenário longínquo, distante da vida que nos importa, que é aquela que está mais próxima de nós. Daí o chamado “desinteresse pela política”.

Mas creio que este sentimento é já uma consequência dos nossos próprios fracassos. A integração na Europa do euro não correu como queríamos. Construímos autoestradas onde não passam carros. Traçámos planos grandiosos que nunca se cumpriram. Afundámo-nos em dívida. Ficámos a um passo da bancarrota. Três vezes – três vezes já –tivemos de pedir auxílio externo em 45 anos de democracia. É demasiado.

Perguntamo-nos como foi isto possível. Criámos comissões de inquérito para encontrar responsáveis. Descobrimos um país amnésico, cheio de gente que não sabe de nada, que não viu nada, que não ouviu nada. Percebemos que a corrupção é um problema real, grave, disseminado, que a Justiça é lenta a responder-lhe e que a classe política não se tem empenhado o suficiente a enfrentá-la.

A corrupção não é apenas um assalto ao dinheiro que é de todos nós – é colocar cada jovem de Portalegre, de Viseu, de Bragança, mais longe do seu sonho.

O sonho de amanhã ser-se mais do que se é hoje vai-se desvanecendo, porque cada família, cada pai, cada adolescente, convence-se de que o jogo está viciado. Que não é pelo talento e pelo trabalho que se ascende na vida. Que o mérito não chega. Que é preciso conhecer as pessoas certas. Que é preciso ter os amigos certos. Que é preciso nascer na família certa.

Os miúdos que não nasceram nesse tipo de “família certa” têm direito aos mesmos sonhos que os filhos das elites portuguesas – todos nós concordamos com isto. Mas será que estamos a fazer alguma coisa para que aquilo com que concordamos se torne realidade? Será que podemos garantir que o talento conta mais do que a família em que cada um nasceu? Será que a igualdade de oportunidades existe?

Quando eu digo à Carolina, ao Tomás, ao Gui ou à Rita – os meus quatro filhos – “leiam mais, trabalhem mais, que o vosso esforço será recompensado” – será que lhes estou a dizer a verdade?

Os meus pais disseram-me isso a mim. E eu estou aqui. Mas será que a mesa está equilibrada e o elevador social funciona hoje da mesma forma? Ou a vida estará bem mais difícil para um jovem na casa dos vinte anos que, numa economia de baixo crescimento, tem de competir com uma geração mais velha já licenciada, integrada num mercado de trabalho rígido, que confere muita protecção a quem tem um lugar no quadro e muito pouca protecção a quem não o tem?

No nosso país instalou-se esta convicção perigosa: um jovem talentoso que queira singrar na carreira exclusivamente através do seu mérito, a melhor solução que tem ao seu alcance é emigrar. Isto é uma tragédia portuguesa.

Não podemos condenar os nossos filhos ao discurso fatalista de um Portugal que é assim, porque nunca foi de outra maneira.

O desespero não nasce do erro, mas do sentimento de que não vale a pena esforçarmo-nos para que as coisas sejam de outra forma – porque nunca serão.

A falta de esperança e a desigualdade de oportunidades podem dar origem a uma geração de adultos desencantados, incapazes de acreditar num país meritocrático.

Esta perda de esperança aparece depois travestida de lucidez, e rapidamente se transforma numa forma de cinismo. Achamos que temos de ser pessimistas para sermos lúcidos. Que temos de ser desesperançados para sermos realistas. Que temos de ser eternamente desconfiados para não sermos comidos por parvos.

Guardamos os bons sentimentos para as nossas relações pessoais, onde somos certamente seres encantadores, mas quando se trata de reflectir sobre o nosso papel enquanto cidadãos, partes de uma nação e de um tecido social e político comum, colocamos uma mola no nariz e dizemos que pouco temos a ver com isso, porque os políticos não se recomendam.

Há o “eles” – os políticos, as instituições, as várias autoridades, muitas das quais (receio bem) se encontram hoje aqui presentes. E há o “nós” – eu, a minha família, os meus colegas, os meus amigos.

Entre o “nós” e o “eles” há uma distância atlântica, com raríssimas pontes pelo meio. “Eles” não têm nada a ver connosco. “Nós” não temos nada a ver com eles.

O senhor Presidente da República costuma dizer com frequência que os portugueses, quando querem, são os melhores do mundo. O senhor Presidente da República que me perdoe o atrevimento: não há qualquer razão para os portugueses serem melhores do que os finlandeses, os nepaleses ou os quenianos.

Mas tenho uma boa notícia para dar: também não precisamos de ser melhores.

Para quem ainda acredita numa ideia de comunidade, os portugueses são aqueles que estão ao nosso lado. E isso conta. E conta muito.

Partilhamos uma língua, um país com uma estabilidade de séculos, sem divisões, e é uma pena que por vezes pareçamos cansados de nós próprios. Tivemos História a mais; agora temos História a menos. Passámos da exaltação heróica e primária do nosso passado, no tempo do Estado Novo, para acabarmos com receio de usar a palavra “Descobrimentos”. Simplificamos a História de forma infantil.

No século XVI, Luís de Camões já cantava os seus amores por uma escrava de pele negra – tão bela e tão negra que até a neve desejava mudar de cor. Para desarrumar os estereótipos, talvez precisemos de um pouco menos de Lusíadas e de um pouco mais de lírica camoniana.

Menos exaltação patriótica e mais paixão por cada ser humano – eis uma fórmula que me parece adequada aos tempos que vivemos. Sendo já poucos os que acreditam nas grandes narrativas, continuamos a acreditar nas pessoas que temos ao nosso lado. E esse é o caminho para a identificação possível dos portugueses com Portugal.

Sozinhos somos ninguém. A velha pergunta bíblica “acaso sou eu o guarda do meu irmão?” tem uma única resposta numa sociedade decente: “Sim, és.” Num país algo desencantado, o grande desafio está em tentar desenvolver um sentimento de pertença que vá além dos prodígios do futebol.

Quando o senhor Presidente da República me convidou para presidir a estas cerimónias houve muita gente que ficou espantada, incluindo eu próprio. Mas com o tempo fui-me afeiçoando à ideia de que talvez não seja absolutamente necessário ter méritos extraordinários para estar aqui, e que Portugal precisa cada vez mais de um 10 de Junho feito de pessoas comuns e para pessoas comuns.

Um 10 de Junho que aproxime as linhas entre o “nós” e o “eles”. Uma festa do português anónimo, da arraia-miúda, daquelas pessoas que todos os dias fazem mais por este país do que elas próprias imaginam.

O 10 de Junho do meu avô, que tinha uma casa de pasto no fundo da rua de Elvas e oferecia um prato de sopa a quem não tinha dinheiro para pagar uma refeição.

O 10 de Junho dos meus sogros, que tiveram de fugir de Moçambique em 1975 e reconstruir toda a vida em Portugal com seis filhos para criar, alguns dos quais ficaram dispersos pela família até eles voltarem a ter condições para os acolher.

O 10 de Junho das três mulheres que criaram a minha mulher, uma delas originária de Timor, que viajaram desde o outro lado do mundo para acolher um bebé nascido em Moçambique e fazê-lo crescer numa pequena aldeia da Beira Interior.

São histórias de vida impressionantes.

Portugal não é composto apenas por instituições longínquas, Parlamentos em Lisboa, políticos distantes de quem dizemos mal no café.

Portugal somos nós. Sou eu. São as pessoas que estão sentadas em lugares privilegiados nestas bancadas. São os militares que desfilam à nossa frente. São os portalegrenses debaixo do sol de Junho. São as pessoas lá em casa, a ouvir estas palavras.

Todos temos nas nossas famílias histórias destas, de gente banal envolvida em feitos extraordinários.

Temos o hábito de levantar a cabeça à procura de grandes exemplos, e nem sempre os encontramos – mas muitas vezes os melhores exemplos estão ao nosso lado, e alguns deles começam em nós mesmos.

Sobre cada um de nós recai a responsabilidade de construir um país do qual nos possamos orgulhar.

Aos políticos que dirigem Portugal, e representam os seus cidadãos, compete-lhes contribuir para esse esforço, propondo-nos um caminho inteligível e justo. Os portugueses podem não ser os melhores do mundo, mas são com certeza capazes de coisas extraordinárias desde que sintam que estão a fazê-las por um bem maior.

A política não falha apenas quando conduz o país à bancarrota. A política falha quando deixa o país sem rumo e permite que se quebre a aliança entre o indivíduo e o cidadão.

Aquilo que melhor distingue as pessoas não é serem de esquerda ou de direita, mas a firmeza do seu carácter e a força dos seus princípios. Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, é que nos dêem alguma coisa em que acreditar. Que alimentem um sentimento comum de pertença. Que ofereçam um objectivo claro à comunidade que lideram.

Nós precisamos de sentir que contamos para alguma coisa. (Além de pagar impostos.)

Cada português precisa de sentir que conta, precisa de sentir que os seus gestos não contribuem apenas para a sua felicidade individual, ou para a felicidade da sua família, mas que têm um efeito real na sociedade, e podem, à sua medida, servir o país.

É preciso dizer ao velho que perdeu tudo nos incêndios de Pedrógão – tu contas. É preciso dizer ao miúdo que habita na pobreza do Bairro da Jamaica – tu contas.

É preciso dizer ao cabo-verdiano que trocou a sua terra por Portugal, em busca de um futuro melhor para os seus filhos – tu contas, e os teus filhos não estão condenados a passarem o resto das suas vidas a limpar as casas da classe alta de Lisboa ou do Porto.

É preciso dizer à mãe ou ao pai que se sacrifica diariamente para que o seu filho possa estudar numa boa escola – tu contas, o teu esforço não será desperdiçado, e enquanto cidadão português tens os mesmos direitos e a mesma dignidade que um primeiro-ministro ou um Presidente.

E se alguma pessoa emproada vos perguntar pelo vosso currículo, digam-lhe que currículo tem tanto o académico que decide dedicar a sua vida ao estudo como o pai que decide dedicar a sua vida aos filhos.

Currículo tem tanto o cientista que dedica o seu tempo à investigação como o reformado ou o jovem que dedicam o seu tempo a ajudar os outros.

São diferentes tipos de currículo, mas são currículo.

E se ainda assim vos perguntarem “quem é que tu achas que és?”, respondam apenas: “Sou um cidadão que todos os dias faz a sua parte para que possamos viver num Portugal melhor e mais justo.”


Isso chega – aliás, não só chega, como é aquilo que mais falta nos faz.”




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