sábado, 29 de janeiro de 2011

LONDRES VITORIANA

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"Como sabem, Londres só é habitado desde os começos de Maio até aos primeiros dias quentes de Agosto. O resto do ano, Londres é a caída Palmira ou a tenebrosa planície do deserto da Petreia. Ficam lá, é verdade, entre três a quatro milhões de humanidade: mas é uma humanidade subalterna, feita de barro vilão, sem valor social em Inglaterra: é a humanidade que não tem castelos, nem parques de três léguas, nem o seu nome no Livro de Ouro, nem iates de luxo para bordejar nas costas da Escócia; é a humanidade que não tem nas artérias o famoso sangue normando, esse sangue invejado, mais precioso que o de Cristo, cantado por todos os poetas da corte, e que foi importado pelos brutamontes cobertos de ferro e peludos como feras que acompanharam a essas ilhas Guilherme da Normandia. E enfim a humanidade que Carlos Stuart, o Bem Amado, chamava a canalha, e que o grande sacerdote da Bela Helena, o pobre Offenbach, designava, com tanto critério, pelo nome de vil multidão – é o trabalhador, o artífice, o artista, o professor, o filósofo, o operário, o romancista, tudo o que pensa, cria e produz.

É esta fresca ralé que fica em Londres: de modo que apenas a humanidade superior, os dez mil de cima, como aqui tão pitorescamente se diz, partem para os seus castelos, as suas vilas à beira-mar, ou os seus iates – Londres, apenas habitada pela turba abjecta, torna-se sobre a face da Terra como a lamentável Cacilhas. Nenhum gentleman que se respeite e queira manter o seu bom nome social ousaria confessar que esteve em Londres em Janeiro: correria o risco de ser tomado por um tendeiro, ou, pior, por um filósofo, um poeta, um desses seres rastejantes, vis como o lixo, sem castelo e sem matilha de cães, que nenhuma lady quereria ter no seu «rol de visitas».

Se um gentleman, tendo negócios instantes em Londres, é forçado a vir a este deserto de plebeus, guarda um incógnito severo; não chegará talvez a pôr barbas postiças; mas só se arrisca pelas ruas no fundo escuro de um cupé com os estores descidos, e o paletó rebuçando-lhe a face. Todavia uma aventura tão poderosa poucos a ousam!"
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Eça de Queirós in "Cartas de Inglaterra"
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