.
.
É a verdade. Há concelhos em que nem câmara, nem administração, nem regedoria se manifestam mais do que em atravessar pomposamente a praça, no dia da procissão dos Passos, fazendo reluzir ao sol o óleo espesso do penteado. A vila está entregue aos acasos naturais. Nenhumas obras; as vielas descalçam-se, os muros abatem, os enxurros empoçam. Nenhuma higiene: a imundície apodrenta em sossego, os maus cheiros fazem atmosfera, os porcos fossam às portas, a praça é uma capoeira pública. Nenhuma polícia; no mercado a desordem, na taberna o jogo, nas esquinas os bêbedos. A administração namora as moças, a regedoria barbeia os fregueses. Não se cria nada, nem se conserva coisa alguma. O que há serve tranquilamente para se estragar: desde a escola que vai perdendo os discípulos, até à cadeia que vai perdendo as grades. É uma vila que apodrece. Há aí o silêncio dos sítios em que cresce o bolor. Um marchante que passa, uma égua que trota, surpreendem: as crianças escancaram a boca, as autoridades espreitam do canto. Ninguém é rico, ninguém é vivo. Dizem-se apenas meias palavras e aperta-se apenas meio botão. Não se vive inteiramente, como não se vestem inteiramente os casacos: a vida e os casacos trazem-se às costas.
Pois bem, um dia uma portaria diz: «Este concelho está extinto – e fica anexado a tal outro...
Indignação! Clamor! «O quê! quer o Governo impedir que nós mesmos construamos as nossas estradas, dotemos as nossas escolas? quer amarrar a vontades alheias a força dos nossos braços? É assim que recompensa o nosso zelo provado?...
Nós que há tanto tempo curamos desveladamente, etc...»
Ora se, em atenção a estas reclamações ansiosas, fosse concedido a este concelho o continuar a administrar – ele continuaria a apodrecer.
Estranha inconsequência provinciana! Escandalizar-se uma excelente vila – por a lei lhe tirar um trabalho que ela espontaneamente já tirara de si! Arrufar-se porque a lei lhe estabelece como preceito – o que até aí era nela desleixo! Amuar-se – porque a lei lhe legitima o erro! Reclamar – porque o que fora o vício da sua imbecilidade se torna a virtude da sua obediência! Singular, singular!
Eça de Queirós, “A descentralização administrativa” in “Uma Campanha Alegre”
..
Sem comentários:
Enviar um comentário