quinta-feira, 5 de agosto de 2010

QUENTAL, A MULHER, E JOANA D’ARC

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Joana d' Arc ajoelhou contrita na terra que libertara, e sentiu que a morte vinha perto: a sua missão havia acabado. Que lhe restava a ela, agora com efeito? O que espera na terra tudo quanto é grande e sublime: a morte de Cristo, o sacrifício, morte de afronta e de ignomínia e depois o amor e o culto da posteridade.
Aldeã visionária a princípio; mais tarde mendiga sublime duma espada e duma hoste que levasse à vitória; depois alma de Graco encarnada nas formas duma virgem; mais que mulher por fim, mártir duma ideia grande; saíra a passos lentos das suas montanhas, triste da serena melancolia das resoluções inabaláveis, para atravessar a França como nuvem revolta de entusiasmo e patriotismo, e cair depois sobre uma fogueira, expiando ali o crime sublime da virtude.
O povo entorpecido pela conquista não pôde conceber como a alma duma donzela, que o ardor duma crença consumia, pudesse salvar uma nação: o rei que ela levantara do pó para assentar sobre um trono, não tinha força para interpor o seu ceptro entre a mulher e a fogueira.
Pobre dela ! Envolta já pelas chamas que a iam tragar, elevava os olhos ao céu, beijando com fervor a imagem do Crucificado que os fariseus lhe apresentavam por escárnio; mas sob a túnica rara palpitavam e tremiam-lhe os seios castos de virgem !
O espírito, depurado pela tortura, fugiu em busca de novos mundos; e sobre as cinzas que ficaram vieram depois os homens elevar-lhe um altar de gratidão e saudade. O sacrifício vinculou mais uma vez na terra o culto da dedicação e da virtude. Mas o invólucro daquela alma tão nobre e tão pura, nobre e puro também como ela, mais fraco só; mas aquele corpo de virgem não pôde deixar de tremer quando as mãos impuras do algoz o amarraram ao poste da ignomínia, quando se viu amaldiçoada por aqueles mesmos por quem dava a vida, quando as chamas, lambendo-lhe o seio e o rosto, lhe pousaram lá o primeiro e último beijo, o beijo
da morte!
Mas que importa tudo isto? Estava salva a França, e salva por uma mulher. Podiam agora cumprir-se nela os grandes desígnios da Providência: podiam agora brotar-lhe e arreigarem-se-lhe no seio todas as grandes ideias que tinham de lustrar depois o mundo num grande baptismo de verdade e de luz.
E que peso tem na balança dos desíginos do mundo uma gota de sangue mais vertido em prol dos homens? Nesse grande tributo de sangue pago pela verdade ao erro, pela luz às trevas não é a mulher quem menos lágrimas nem menos sangue tem dispendido. Esse que corria ainda quente confirmava mais uma vez esta verdade.
Agora a França, livre, contava mais uma mártir: agora tinha a mulher ainda uma vez mais o direito de exigir da humanidade preito e vassalagem. Joana d'Arc, morrendo pela França, morreu também pela liberdade do mundo!
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Antero de Quental in “Influência da Mulher na Civilização”
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