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Ramalho Ortigão, pouco tempo depois, dizia dele numa carta carinhosa: - «Fradique Mendes é o mais completo, mais acabado produto da civilização em que me tem sido dado embeber os olhos. Ninguém está mais superiormente apetrechado para triunfar na Arte e na Vida. A rosa da sua botoeira é sempre a mais fresca, como a ideia do seu espírito é sempre a mais original. Marcha cinco léguas sem parar, bate ao remo os melhores remadores de Oxford, mete-se sozinho ao deserto a caçar o tigre, arremete com um chicote na mão contra um troço de lanças abissínias:- e à noite numa sala, com a sua casaca do Cook, uma pérola negra no esplendor do peitilho, sorri às mulheres com o encanto e o prestígio com que sorrira à fadiga, ao perigo e à morte. Faz armas como o cavaleiro de Saint-Georges, e possue as noções mais novas e as mais certas sobre Física, sobre Astronomia, sobre Filologia e sobre Metafísica. É um ensino, uma lição de alto gosto, vê-lo no seu quarto, na vida íntima de gentleman em viagem, entre as suas malas de couro da Rússia, as grandes escovas de prata lavrada, as cabaias de sêda, as carabinas de Winchester, preparando-se, escolhendo um perfume, bebendo golos de chá que lhe manda o Gran-Duque Vladimir, e ditando a um criado de calção, mais veneravelmente correcto que um mordomo de Luiz XIV, telegramas que vão levar noticias suas aos boudoirs de Paris e de Londres. E depois de tudo isto fecha a sua porta ao mundo - e lê Sófocles no original».
Este é um trecho de Eça n' “A Correspondência de Fradique Mendes”. A sua leitura suscitou-me duas reflexões. A primeira tem a ver com uma conversa tida há dias com pessoa amiga sobre a literatura como arte; isto é, o que faz da escrita arte: o conteúdo de ideias embrulhadas no texto, ou a forma como uma qualquer ideia é embrulhada? Tenho poucas dúvidas que ambos os requisitos são importantes, mas a forma ou estilo, é o selo de contraste da literatura quanto a mim, embora tal opinião não interesse a ninguém, está bem de ver.
A chamada escrita criativa usa a metáfora, a analogia, o inesperado adjectivo, o ritmo, a melodia produzida quando o texto é verbalizado, e muito mais, como ferramenta artística. O trecho transcrito em cima é o exemplo do que digo. E é exemplo porque o conteúdo merece prudência; e com isto entro na segunda reflexão.
Ninguém me acusará de impertinência com Eça pois sou o seu mais incondicional admirador nesta galáxia chamada de Via Láctea. Mas, tal como alguém escreveu, Eça era admirador da cidade até à saloiada. Dito isto assim, parece inconveniência mas não é tal. Aliás, é no romance “A Cidade e as Serras” que Eça se descai mais e deixa atraiçoar. A loas à aldeia e à província soam a descoberta fresca, incompletamente digerida. As malas de couro da Rússia, as grandes escovas de prata lavrada, as cabaias de sêda, as carabinas de Winchester, o chá do Gran-Duque Vladimir, e os telegramas com noticias para os boudoirs de Paris e de Londres de Fradique, são o máximo civilizacional para Eça: aquilo que o deslumbra, com que sonha, que ambiciona acima de tudo.
Há espíritos superiores e Eça era um. Foi bafejado pela natureza com excepcional e inspirada capacidade literária e inteligência singular. Mas era humano e as inferioridades ou algumas limitações afligem todos. A literatura é a forma artística onde é mais fácil encontrá-las e este excerto sobre Fradique demonstra-o cabalmente.
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