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Este é um trecho de Eça n' “A Correspondência de Fradique Mendes”. A sua leitura suscitou-me duas reflexões. A primeira tem a ver com uma conversa tida há dias com pessoa amiga sobre a literatura como arte; isto é, o que faz da escrita arte: o conteúdo de ideias embrulhadas no texto, ou a forma como uma qualquer ideia é embrulhada? Tenho poucas dúvidas que ambos os requisitos são importantes, mas a forma ou estilo, é o selo de contraste da literatura quanto a mim, embora tal opinião não interesse a ninguém, está bem de ver.
A chamada escrita criativa usa a metáfora, a analogia, o inesperado adjectivo, o ritmo, a melodia produzida quando o texto é verbalizado, e muito mais, como ferramenta artística. O trecho transcrito em cima é o exemplo do que digo. E é exemplo porque o conteúdo merece prudência; e com isto entro na segunda reflexão.
Ninguém me acusará de impertinência com Eça pois sou o seu mais incondicional admirador nesta galáxia chamada de Via Láctea. Mas, tal como alguém escreveu, Eça era admirador da cidade até à saloiada. Dito isto assim, parece inconveniência mas não é tal. Aliás, é no romance “A Cidade e as Serras” que Eça se descai mais e deixa atraiçoar. A loas à aldeia e à província soam a descoberta fresca, incompletamente digerida. As malas de couro da Rússia, as grandes escovas de prata lavrada, as cabaias de sêda, as carabinas de Winchester, o chá do Gran-Duque Vladimir, e os telegramas com noticias para os boudoirs de Paris e de Londres de Fradique, são o máximo civilizacional para Eça: aquilo que o deslumbra, com que sonha, que ambiciona acima de tudo.
Há espíritos superiores e Eça era um. Foi bafejado pela natureza com excepcional e inspirada capacidade literária e inteligência singular. Mas era humano e as inferioridades ou algumas limitações afligem todos. A literatura é a forma artística onde é mais fácil encontrá-las e este excerto sobre Fradique demonstra-o cabalmente.
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