quinta-feira, 22 de julho de 2010

POLEMISTA DEMOLIDOR



Sr. Presidente do Conselho de Higiene e Vogais do mesmo

Tenho a honra de levar ao conhecimento da muito ilustrada competência profissional de V. Ex.as os seguintes factos:
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Em 31 de Janeiro último, produzindo no jornal A Pátria uma série de documentos, de carácter exclusivamente pessoal, tive de os explicar em algumas linhas de prosa justiceira, das quais tombaram sobre o Gonçalves da Província, estas duas acusações de torto e m. . . — a primeira, fundamentada quase toda no seu proceder desleal para com Junqueiro, visando-lhe o carácter— a segunda, mais particularmente inferida da sua singular e fétida maneira de tirar desagravo nas polémicas jornalísticas, visando-lhe a figura.
O homem, pesando a afronta, não hesitou em desviá-la do terreno em que outros haveriam preferido deslindá-la, e encarregou, disseram-me, os tribunais de terem coragem em seu lugar. Vai, disse comigo: onde viu ele injúria digna de querela? No epíteto de torto, exclusivamente endereçado ao ser moral? ou no epíteto de m. . . , exclusivamente chapado no ser físico?
Posto em sossego, e conversa a ideia a uma cogitação das mais sanhudas, concluí que o Gonçalves querelara de mim, não por amor das injúrias ao carácter — Junqueiro lhas fez piores, sem ele dar sinal de indignação — mas por via da excretícia palavra com que eu me ...(
ilegível) designar-lhe a histoquímica do inútil corpanzil. O troca-tintas espera que os tribunais lhe refaçam uma carcaça de nervo, sangue e osso, como a de qualquer homem, e que a posteridade tenha por fabulosa a morfologia de cagalhão impermeável que eu lhe dei. Ora, como a forma de processo jurídico em que este caso deriva, é sumária quase, mercê da defeituosa legislação que ainda temos, e como infelizmente ela me não dá esperança alguma de que o tal Gonçalves seja catrafilado em meu lugar, tudo quanto eu de bom posso fazer nesta querela, Snr. Presidente do Conselho e mais Vogais, é munir-me de atestados por tal forma inconcussos, que no dia da audiência o juiz reconheça que é efectivamente de m. . . o meu querelador. Eis porque venho aos pés da sapientíssima agremiação que V. Ex.as resumem, suplicar que me analisem qualitativa e quantitativamente o tipo, trasladando-se a análise em papel selado, com o carimbo do laboratório e a assinatura do químico preparador, a fim de que esse documento, cosido aos autos, valorize pelos veredictos da ciência, o qualificativo causador do meu processo. E outrosim requeiro, Snr. Presidente do Conselho de Higiene e mais Vogais, que a ser de trampa o homem, se especifique na minuta a espécie provável de animal que o defecou; pois desconfio seja de besta, e absolutamente careço, para meus estudos, de ver confirmada cientificamente esta asserção. A par da reconhecida pusilanimidade, da forma ...(ilegível) e da cor, outros dados me levaram a concluir da natureza fecal do exibidor das minhas cartas íntimas: e vem a ser o cheiro mau que Lisboa tem, desde que ele transferiu para entre nós a sua residência (cheiro que todos os jornais têm citado, assustadíssimos, incluindo o dele) e os tantos casos de febres podres que particularmente grassam no Chiado, sítio onde frequentes vezes é visto o fenómeno vital que recomendo aos alambiques e reacções do laboratório desse Conselho. Esperarei dez dias pela análise, e se findo o prazo, condições políticas demoverem V. Ex.as a deixar indeferido o meu apelo, levá-lo-ei desasombradamente ao instituto veterinário — porque se não diga, que já não há química neste país!
Deus guarde a V. Ex.as, etc.
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Fialho de Almeida in “Os Gatos”
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