segunda-feira, 30 de outubro de 2017

PINGOS DE LITERATURA

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Para o fim de Janeiro o mar ia-se tornando tempestuoso,.começava a despejar sobre a povoação um lixo espesso e poucas semanas depois tudo estava contaminado pelo seu humor insuportável. A partir de então o mundo não valia a pena, pelo menos até ao outro Dezembro, e ninguém ficava acordado depois das oito. Mas no ano em que veio o senhor Herbert o mar não se alterou, nem sequer em Fevereiro. Pelo contrário, tornou-se cada vez mais liso e fosforescente, e nas primeiras noites de Março exalou uma fragrância de rosas.
Tobías sentiu-a. Tinha o sangue doce para os caranguejos e passava a maior parte da noite a espantá-los da cama, até que virava a brisa e conseguia dormir. Durante as suas longas insónias tinha aprendido a distinguir qualquer mudança do ar. De maneira que quando sentiu um cheiro de rosas não precisou de abrir a porta para saber que era um cheiro do mar.
Levantou-se tarde. Clotilde estava a acender o lume no pátio. A brisa era fresca e todas as estrelas estavam nos seus lugares, mas era difícil contá-las até ao horizonte, por causa das luzes do mar. Depois de tomar café, Tobías sentiu um ressaibo da noite no paladar.
- Esta noite - recordou - sucedeu uma coisa muito estranha.
Clotilde, evidentemente, não a tinha sentido. Dormia de uma maneira tão pesada que nem sequer recordava os sonhos.
- Era um cheiro de rosas - disse Tobías -, e tenho a certeza de que vinha do mar.
- Não sei a que cheiram as rosas - disse Clotilde. Talvez fosse verdade. O povoado era árido, com um solo duro, gretado pelo salitre, e só de vez em quando alguém trazia de outro lugar um ramo de flores para o atirar ao mar, no sítio de onde se atiravam os mortos.
- É o mesmo cheiro que tinha o afogado de Guacamayal - disse Tobías.
- Está bem - sorriu Clotilde -, então se era um bom cheiro, podes ter a certeza de que não vinha deste mar.
Era, com efeito, um mar cruel. Em certas épocas, enquanto as redes não arrastavam senão lixo em suspensão, as ruas do povoado ficavam cheias de peixes mortos quando se retirava a maré. [...]

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Gabriel Garcia Marquéz — O mar do tempo perdido in "A Incrível e Triste História da Cândida Eréndira e da sua Avó Desalmada"
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