O cidadão, pensionista da Caixa Geral de Aposentações, sentado
no banco do jardim, observa as pombas no chão e uma ou outra garota em trânsito quando
uma mosca—uma insignificante mosca—lhe pousa no braço a chatear. Sacode-a, mas
passados segundos ela volta. Novamente a enxota e novamente volta. Levanta
suavemente a mão e desfere-lhe uma palmada que, se não a transforma num corpo
planificado, a deixa reduzida a pouco menos que isso.
Aquele ser tinha asas, pernas, aparelho digestivo, sistema
nervoso, olhos e mais um ror de órgãos feitos de células complicadíssimas com
um núcleo onde morava o genoma, depósito de informação inimaginável que a
natureza levou milénios a apurar.
E daí?—perguntar-se-á. Era um ser insignificante,
minúsculo e, ainda por cima, chato. Mais mosca, menos mosca, tanto faz. O que
mais há são moscas.
A conversa é
irónica se pensarmos que também se
aplica ao homem que a esborrachou e aos outros—insignificantes, minúsculos e
chatos é o que todos somos, mais um, menos um de nós tanto faz e o que mais há
são homens e mulheres: mais de sete mil milhões neste momento, com tendência
para sermos mais.
Aquela mosca mereceu morrer porque era chata e aquele
homem não merece morrer, mesmo que cometa um crime hediondo. A isto chama-se
antropocentrismo, justificado pelos crentes que reclamam para si um lugar à
parte no mundo, cujo centro ocupam.
Salvo o devido respeito por todas as opiniões, parece-me
que o antropocentrismo é manifestação pouco ética na maior parte dos casos. Predar,
ou matar para comer, é prática generalizada no mundo animal, Homo sapiens incluído. Aceitemo-la, embora com
reserva por não ficar muito bem na teoria do desenho inteligente. Matar para
defesa própria, incluindo desinfestações e similares, aceita-se melhor. Mas
matar por enfado, como no caso daquela mosca, é o quê?
Sei que o lavrado acima é considerado conversa de quem tem
o encéfalo a bater válvulas. Provavelmente é. Mas pretende servir para mostrar
como as coisas são relativas. "Fabricar" animais em condições
industriais desumanas para abater e comer, ou criar gado para lidar numa praça
de touros como forma de actividade lúdica não é muito diferente e não sei o que é pior. Mas muito diferente é matar uma mosca porque chateia. Dirão
que a mosca é um insecto pequeno e insignificante e o touro é um grande
mamífero. Qual é a diferença?—pergunto. O Bureau
International des Poids et Mesures tem alguma bitola para o que é aceitável
e o que não é, em função da dimensão ou taxonomia dos bichos? Suspeito que não
tem. Sugeria que nos deixássemos de radicalismos porque, para chatear, já basta o Estado Islâmico e coisas muito mais
graves do mesmo género.
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- Que eu saiba, Picasso nunca desenhou mata-moscas.
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