sábado, 10 de julho de 2010

OS POBRES


[...] O que é a vida?
A vida é o mal. A expressão última da vida terrestre é a vida humana, e a vida dos homens cifra-se numa batalha inexorável de apetites, num tumulto desordenado de egoísmos, que se entrechocam, rasgam, dilaceram. [...] A fera, a dez passos, perturba-nos. O homem, a quatro léguas, enche-nos de terror. O homem é a fera dilatada. [...]
[...] A pata pré-histórica do atlantosauro esmagava o rochedo. As dinamites do químico estoiram montanhas, como nozes. Se a presa do mastodonte escavacava um cedro, o canhão Krup rebenta baluartes e trincheiras. Uma víbora envenena um homem, mas um homem, sozinho, arrasa uma capital.
Os grandes monstros não chegam verdadeiramente na época secundária; aparecem na última, com o homem. Ao pé dum Napoleão um megalosauro é uma formiga. Os lobos da velha Europa trucidam algumas dúzias de viandantes, enquanto milhões e milhões de miseráveis caem de fome e de abandono, sacrificados à soberba dos príncipes, à mentira dos padres e à gula devoradora da burguesia cristã e democrática. O matadoiro é a fórmula crua da sociedade em que vivemos. Uns nascem para reses, outros para verdugos. Uns jantam, outros são jantados. Há criaturas lôbregas, vestidas de trapos, minando montes, e criaturas esplêndidas, cobertas de oiro e de veludo, radiando ao sol. No cofre do banqueiro dormem pobrezas metalizadas. Há homens que ceiam numa noite um bairro fúnebre de mendigos. Enfeitam gargantas de cortesãs rosários de esmeraldas e diamantes, bem mais sinistros e lutuosos que rosários de crânios ao peito de selvagens. [...]
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Guerra Junqueiro in Carta-Prefácio do livro “Os Pobres” (Raul Brandão)
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