Um texto brihante e imperdível — excerto com o título "Fátima", do livro "A República Velha" de Vasco Pulido Valente, publicado no jornal "Observador".
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Ao país inteiro parecia que a hora do apocalipse tinha chegado, e
a ninguém mais do que aos católicos. Sob pretexto de que a Igreja insistia em
manter comunidades religiosas (no caso, de freiras), seis bispos foram expulsos
das suas dioceses só em 1917: em Fevereiro, os bispos de Portalegre e Bragança;
em Julho, o do Porto; em Agosto, o cardeal-patriarca de Lisboa; em Dezembro, os
arcebispos de Braga e de Évora. Sem a revolução de Sidónio Paes, todos os
bispos haveriam sido eventualmente desterrados, porque a representação que dera
origem ao desterro dos dois últimos, os de Braga e Évora, estava assinada por
todos.
A guerra e o exacerbamento da ditadura democrática
intensificaram também, como não podia deixar de ser, as perseguições ao clero
menor. A Lei de Separação oferecia oportunidade a infinitos tormentos. O poder
civil, frequentemente democrático, ou pelo menos sob a intimidação dos
democráticos, proibia ou autorizava a seu arbítrio as manifestações exteriores
da Igreja. À medida que os desastres se acumulavam, os padres e os católicos
iam pagando o desespero dos “bons republicanos”. Eles eram os culpados por
excelência e as vítimas predestinadas de tudo o que corresse mal, e quase tudo
corria mal aos putativos obreiros do engrandecimento pátrio. Os portugueses não
gostavam da guerra? Influência e perfídia dos padres, mancomunados com os
talassas. O povo revoltava-se nas cidades, porque não tinha pão, e na
província, porque lhe requisitavam os cereais? Manobras do clericalismo. Os
preços subiam? Intrigas dos jesuítas. Portugal parecia não estimar o dr. Afonso
Costa de acordo com os seus muitos méritos? Monomania religiosa. As represálias
vinham a seguir: padres presos por tocaram sinos; procissões interrompidas
porque o bispo se atrevera a pôr vestes talares; igrejas fechadas porque abriam
a porta a mulheres e crianças durante o dia, ou porque o pároco local dissera
missa por um “conspirador”, ou porque oficiais de uniforme haviam ajudado à
missa (papel delicadamente descrito como “trazer os panos”), ou porque o
sacristão expendera na mercearia da aldeia “opiniões defectistas e
germanófilas”. Sobre isto, a cada incidente, a imprensa local e nacional
convocava o seu velho repertório de insultos e torpezas: o padre concupiscente
que “cevava os instintos” nas virgens e nas mulheres casadas, o padre
homossexual, o padre comilão, o padre ladrão, as beatas talassas, as crianças
envenenadas pelo “fanatismo”, os aldeões que temiam a Deus e por aí fora na
mesma veia.
Em Agosto os bispos reagiram atacando brutalmente a República:
“Vexados, perseguidos, punidos e, como complemento, caluniados, eis a sorte dos
católicos neste país! A República Portuguesa é que se cobre de glória com tais
actos de força, quando deixa impunes, segundo a voz corrente, malversões,
peculatos, crimes gravíssimos de toda a espécie; quando lhe falta energia para
pôr cobro à desorganização dos serviços, à ganância dos especuladores, à
ambição dos incompetentes, à desordem social, quase anarquia declarada, que vai
campeando e crescendo dia a dia.” Esta pastoral já não era, nem procurava ser,
um documento de orientação religiosa dos fiéis. Perante a óbvia fraqueza do
Partido Democrático e, ao mesmo tempo, a sua intolerável violência, a Igreja
tomava, sem vacilar, a cabeça da oposição política. Os republicanos moderados
estavam desfeitos e, aparentemente, resignados. O movimento monárquico oficial
tinha recebido ordem de Londres para se abster enquanto a guerra durasse. A
Igreja Católica ocupou o vazio.
Cem anos antes, em 1822, a causa realista fora reanimada por um
milagre. A Virgem aparecera em Carnaxide para declarar que Portugal
sobreviveria à impiedade maçónica. Sob o patrocínio de D. Carlota Joaquina,
grandes peregrinações se fizeram aos locais sagrados, onde Deus garantira a
dízima, os bens dos conventos e a perenidade das classes dominantes. Povo e
nobreza associaram-se nessa devoção, destinada a exorcizar “a pestilenta cáfila
dos pedreiros” e a promover o ódio às Cortes, onde eles “campeavam”. Quando a
insurreição armada começou uns meses depois, trazia já consigo uma sobrenatural
legitimidade.
Em 1915 e 1916 os pastorinhos, Lúcia de Jesus Santos, de 8 anos,
e os irmãos, Jacinta e Francisco, de 7 e 5 anos, viram oito vezes, em vários
sítios da freguesia de Fátima, um anjo, que declarou ser o anjo de Portugal. Ao
princípio, o anjo não era muito nítido e não dizia nada. Pouco a pouco, porém,
foi-se definindo e explicando. De acordo com a ortodoxia, estas visitas
prepararam os acontecimentos de mais consequência que se seguiram. Entre Maio e
Outubro de 1917 a Virgem apareceu quatro vezes a Lúcia, Jacinta e Francisco
(agora, respectivamente com 10, 9 e 7 anos), sempre no dia 13, sempre à mesma
hora e sempre na Cova da Iria, excepto em Agosto, por razões que adiante se
dirão. As relações das crianças com a Virgem variavam: Lúcia via, ouvia e
falava, Jacinta via e ouvia, mas não falava; Francisco via, sem ouvir nem
falar. Lúcia e Jacinta receberam a chamada mensagem, uma série de trivialidades
evangélicas, com apenas duas alusões à realidade, ambas sobre assuntos
correntes. Alegadamente, a Virgem comunicou que a Segunda Guerra Mundial seria
“horrível”, uma ideia muito compreensível, quando a primeira mostrava
diariamente o seu horror, e preveniu também que a Rússia revolucionária se
preparava para subverter o mundo, coisa que os jornais publicavam na primeira
página, dia sim, dia não, desde Fevereiro. As profecias, evidentemente
corrigidas por quem de direito, resumiam as preocupações e a angústia do
conservadorismo português da época. Embora, sem dúvida, além da capacidade das
crianças miraculadas (umas das quais Francisco, em substância passiva, e a
outra, Jacinta, uma testemunha assaz suspeita), reflectissem perfeitamente as
opiniões e os sentimentos do padre médio, esmagado pelo triunfo terreno do mal,
tremendo com a perspectiva de novas catástrofes e sonhando com a eventual
conversão dos pecadores. Que Deus partilhasse as aflições dos inimigos da
República era coisa insusceptível de espantar o clero português em 1917.
As aparições da Virgem foram precedidas e acompanhadas pelo que
um perito descreve como “singularidades astronómicas e atmosféricas”. Destas
singularidades, a mais famosa consistiu no “milagre do Sol”. Lúcia pedira à
Virgem que fizesse um milagre, “para todos acreditarem que Vossemecê apareceu”.
A Virgem não só anuiu, mas marcou data, hora e lugar. Na altura própria, e
perante 100 000 pessoas, o Sol “dançou”, tendo alguns dos presentes visto de
facto o Sol dançar e outros achado que o Sol não dançara.
À primeira aparição não assistiu ninguém. À segunda assistiram
60 vizinhos curiosos. Para a terceira, no entanto, já vieram 5 000 peregrinos
e, para a última, como se sabe, 100 000. Não se conhece o mecanismo pelo qual
se passou de 60 a 100 000 pessoas, ainda que nele esteja o verdadeiro segredo
de Fátima. A simples publicidade dos jornais não bastava com certeza nesse
agitado ano de 1917. A guerra, os assaltos, as greves, os tiros e as bombas, se
predispunham o espírito para uma intervenção divina, também o distraíam. Sucede
que, por acaso ou desígnio, os milagres de Fátima foram muito bem organizados.
A repetição periódica das aparições e a pontualidade da Virgem permitiram que,
de mês em mês, ao longo de seis meses, o caso se fosse tornando conhecido e a
expectativa aumentasse. Para os 100 000 espectadores de Outubro não se tratava
já de crer, ou não, que houvera milagres, mas de verificar se havia (e,
naturalmente, bom número deles ficou convencido). Acresce que em Agosto as
autoridades republicanas, com a exaltada estupidez do seu programático ateísmo,
deram à campanha uma ajuda decisiva. Para a aparição de 13 de Agosto tinham
vindo 5 000 pessoas dos concelhos limítrofes. O administrador do concelho de
Vila Nova de Ourém resolveu pôr ponto final às manobras dos “inimigos da Pátria
e da República”. A Virgem andava desde Junho a prometer “acabar com a guerra”, se
os portugueses deixassem de “ofender Nosso Senhor”. Em 1917 isto era um convite
mais do que explícito à liquidação dos democráticos e o Sr. Oliveira Santos,
sendo representante do governo, teve a ideia notável de prender as criancinhas,
a fim de impedir apelos subversivos e provar que em Portugal o Omnipotente
obedecia às autoridades. A Virgem tencionava aparecer aos pastores na Cova da
Iria a uma hora certa de 13 de Agosto? Muito bem: a essa hora os pastorinhos
estariam na administração do concelho e a Virgem, se quisesse, que aparecesse
às ervas. Não é difícil imaginar o contentamento de um espírito forte com tão
subtil estratagema. Infelizmente, a Virgem foi apenas obrigada a esperar uns
dias e a mudar de sítio e, a 19, em Valinhos, continuou a série das suas
provocações à República, com a redobrada popularidade da perseguição.
Não vale a pena medir a parte espontânea e a parte simulada dos
milagres. O pároco local garantiu a ocorrência de “factos extraordinários” e
falou imediatamente em “obra de Deus”. A partir de Junho, ou seja, da segunda
manifestação da Virgem, os três pastores passaram a ser rodeados por dezenas de
padres, de cuja vigilância nunca mais saíram em vida. O clero local e, depois,
de todo o país colaborou activamente nas primeiras peregrinações, que, pela
própria natureza das coisas, eram simultaneamente um protesto contra a guerra e
contra a República. Ao começo, a hierarquia manteve uma distância prudente,
como se costuma dizer. O que significa que, ajudando e permitindo, só se comprometeu
quando a reputação de Fátima estava estabelecida e o seu valor como símbolo
político confirmado. Produto do ano mais difícil para a Igreja portuguesa
moderna, Fátima foi o fenómeno de um tempo em que “o Inimigo triunfava” e “o
Leão rugia”.
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