sexta-feira, 2 de julho de 2010

A HIPOCONDRIA


[...] Este Henrique de Souzelas atingira a idade dos vinte e sete anos, vivendo, como dissemos, aquela enlanguescedora vida da capital, e dividindo as atenções do espírito pela política, pela literatura e pelos destinos do teatro de S. Carlos, do qual estava habilitado a fazer circunstanciada crónica, que abrangesse os últimos dez anos.
Não concebia vida fora daquilo.
O mundo para ele era Lisboa.
Não sentia desejos, nem imaginava possibilidade de visitar a Europa, quanto mais a provincia; o que seria maior façanha.
Não que lhe faltassem recursos para realizar qualquer projecto desta natureza.
Henrique herdara dos pais rendimentos bastantes, dos quais vivia folgadamente e sem precisar de sacrificar nos altares da economia.
Mas a indolência lisbonense manietava-o ali. A poucos ia tão direita a apóstrofe de Garrett aos seus «queridos alfacinhas», a qual se pode ler no livro sétimo das Viagens.
De certo tempo em diante começou, porém, a incomodá-lo uma espécie de vácuo interior, um mal-estar, doença infalível nos celibatários sem familia, quando chegam à idade a que chegou Henrique, e passam a vida como ele.
Tudo lhe causava fastio. Bocejava em S. Carlos, bocejava nas câmaras, bocejava no Grémio, bocejava no Suíço, no Chiado e nos círculos dos seus amigos, os quais principiaram também a achá-lo insuportável de insipidez; porque poucas coisas há que mais perturbem o espírito, do que o espectáculo dum homem que boceja ou dorme, onde e quando os outros forcejam por divertir-se.
O demónio da hipocondria, esse demónio negro e lúgubre, implacável verdugo dos ociosos e egoístas, o qual havia muito o espiava, apoderou-se dele em corpo e alma.
Aí temos, desde esse instante, Henrique muito preocupado com a sua pessoa, imaginando-se vítima de mil e uma moléstias, as mais disparatadas e incompativeis, suspeitando-se conjuntamente predestinado para a apoplexia e para a tísica, para o cancro e para a alienação, para a cegueira e para as aneurismas, tremendo à leitura do obituário da semana, folheando livros de Medicina, construindo teorias fisiológicas, consultando todos os médicos da capital, experimentando todo o arsenal farmacêutico e todos os anúncios, em parangona, da quarta página dos periódicos, e elevando as crenças do seu espírito amedrontado até às misteriosas e nevoentas alturas do credo homeopático! Ao mesmo tempo manifestou-se nele uma progressiva degeneração de gosto; não podia ler uma página dos livros que lhe eram prediletos; desfazia-se sem desgosto de quadros, móveis, estátuas e objectos curiosos que coleccionara com paixão; detestava a música, o teatro, numa palavra, tornara-se um dos maiores flagelos, que podem pesar sobre a humanidade e que muito em especial causam o suplicio dos médicos que os aturam. [...]
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Júlio Diniz in “A Morgadinha dos Canaviais
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