[...] Cuidavam e diziam os sábios antigos, que em diferentes ilhas do mundo reinavam diferentes deidades: que em Creta reinava Júpiter, que em Delos reinava Apolo, que em Samo reinava Juno, que em Chipre reinava Vénus, e assim de outras. Se o império da mentira não fora tão universal no mundo, pudera-se suspeitar que nesta nossa ilha tinha a sua corte a mentira. Todas as terras, assim como têm particulares estrelas, que naturalmente predominam sobre elas, assim padecem também diferentes vícios, a que geralmente são sujeitas. Fingiram a este propósito os alemães uma galante fábula. Dizem que quando o diabo caiu do céu, que no ar se fez em pedaços, e que estes pedaços se espalharam em diversas províncias da Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam. Dizem que a cabeça do diabo caiu em Espanha, e que por isso somos famosos, altivos, e com arrogância graves. Dizem que o peito caiu em Itália, e que daqui lhes veio serem fabricadores de máquinas, não se darem a entender, e trazerem o coração sempre coberto. Dizem que o ventre caiu em Alemanha, e que esta é a causa de serem inclinados à gula, e gastarem mais que os outros com a mesa e com a taça. Dizem que os pés cairam em França, o que daqui nasce serem pouco sossegados, apressados no andar, e amigos de bailes. Dizem que os braços com as mãos e unhas crescidas, um caiu em Holanda, outro em Argel e que daí lhes veio (ou nos veio) o serem corsários. Esta é a substância do apólogo, nem mal formado, nem mal repartido; porque ainda que a aplicação dos vicios totalmente não seja verdadeira, tem contudo a semelhança de verdade, que basta para dar sal à sátira. É suposto que à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela que nos toca ao nosso Portugal, é a língua: ao menos assim o entendem as nações estrangeiras, que de mais perto nos tratam. Os vícios da língua são tantos, que fez Drexelio um abecedário inteiro, e muito copioso deles. E se as letras deste abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida, que o M. M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e, sobretudo, M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente. [...]
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Padre António Vieira in Sermão de Quaresma pregado em S. Luiz do Maranhão em 1654, sobre a mentira.
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