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[...] Alexandria, com a sua baía atulhada de paquetes, de navios mercantes e de navios de guerra; com os seus cais cheios de fardos e de gritaria, os seus grandes hotéis, as suas bandeiras flutuando sobre os consulados, os seus enormes armazéns, os seus centenares de tipóias descobertas, os seus mil cafés-concertos e os seus mil lupanares; com as suas ruas, onde os soldados egípcios, de fardeta de linho branco, davam o braço à marujada de Marselha e de Liverpul, onde as filas de camelos, conduzidos por um beduíno de lança ao ombro, embaraçavam a passagem dos trâmueis americanos, onde os xeques, de turbante verde, trotando no seu burro branco, se cruzavam com as caleches francesas dos negociantes, governadas por cocheiros de libré – Alexandria realizava o mais completo tipo que o mundo possuía de uma cidade levantina, e não fazia má figura, sob o seu céu azul-ferrete, como a capital comercial do Egipto e uma Liverpul do Mediterrâneo.Isto era assim há cinco ou seis semanas. Hoje, à hora em que escrevo, Alexandria é apenas um imenso montão de ruínas.Do bairro europeu, da famosa Praça dos Cônsules, dos hotéis, dos bancos, dos escritórios das companhias, dos cafés-lupanares, resta apenas um confuso entulho sobre o solo e, aqui e além, uma parede enegrecida que se vai aluindo.Pela quarta vez na história, Alexandria deixou de existir.Tratando-se do Egipto, terra das antigas maldições, pode-se pensar, em presença de tal catástrofe, que passou por ali a cólera de Jeová – uma dessa cóleras de que ainda estremecem as páginas da Bíblia quando o Deus único, vendo uma cidade cobrir-se da negra crosta do pecado, corria de entre as nuvens a cicatrizá-la pelo fogo como uma chaga viva da Terra. Mas desta vez não foi Jeová. Foi simplesmente o almirante inglês Sir Beauchamp Seymour, em nome da Inglaterra e usando com vagar e método, por ordens do governo liberal do Sr. Gladstone, os seus canhões de oitenta toneladas.Seria talvez desonesto, decerto seria desproporcionado, o juntar aos nomes dos homens fortes que nestes últimos dois mil anos se têm arremessado sobre Alexandria e a têm deixado em ruínas – aos nomes de Caracala, o pagão, de Cirilo, o santo, de Diocleciano, o perseguidor, e de Ben-Amon, o sanguinário – o nome de Sr. William Gladstone, o humanitário, o paladino das nacionalidades tiranizadas, o apóstolo da democracia cristã. Mas se por um lado, evidentemente, a política do Sr. Gladstone não é um produto de pura ferocidade pessoal, como a de Caracala, que fez arrasar Alexandria porque um poeta dessa cidade fatalmente dado às letras o molestara num epigrama – por outro lado esta brusca agressão de uma frota de doze couraçados, cidadelas de ferro flutuando sobre as águas, contra as decrépitas fortificações de Mehemet Ali, este bombardeamento de uma cidade egípcia estando a Inglaterra em paz com o Egipto, parece-se singularmente com a política primitiva do califa Omar ou dos imperadores persas, que consistia nisto: ser forte; cair sobre o fraco, destruir vida e empolgar fazenda. Donde se vê que isso a que se chama aqui a «política imperial de Inglaterra» ou «os interesses da Inglaterra no Oriente», pode levar um ministro cristão a repetir os crimes de um pirata muçulmano, e o Sr. Gladstone, que é quase um santo, a comportar-se pouco mais ou menos como Ben-Amon, que era inteiramente um monstro. Antes não ser ministro de Inglaterra! E foi o que pensou o venerável John Brigth, que, para não partilhar a cumplicidade desta brutal destruição de uma cidade inofensiva, deu a sua demissão do Gabinete, separou-se dos seus amigos de cinquenta anos e foi modestamente ocupar o seu velho banco de oposição...[...]
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Eça de Queirós in "Cartas de Inglaterra"
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