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[...] Escrevo-lhes estas linhas de cima de um boi, para onde resolvi
vir habitar durante o mês corrente e o mês seguinte. Separa-me do amável e
discreto ruminante um ténue sobrado. Eu oiço-o mastigar pausadamente com a
regularidade do tic-tac do meu cuco, ele ouve-me o ranger da pena, e raramente
batemos para cima ou para baixo a pedir qualquer coisa um ao outro. A
respiração dele é perfumada com o aroma do feno. Nunca cheira a caçarola suja
nem a cano, como os prédios da baixa. Não escreve obscenidades na parede da
escada, e—coisa que lhe perguntei antes de o vir habitar—não toca piano.
De quando em quando, pela sesta, calço os sapatos
ferrados, pego no cajado que nos está ouvindo àquele canto, acendo um charuto e
saio de cima do boi para percorrer as montanhas circunvizinhas.
Em alguns casais amigos permitem-me a troco do preço de
meio alqueire de farinha o prazer de amassar eu mesmo o meu pão, de o enrolar,
de o meter ao forno e de o trazer às costas para casa, daí a dez minutos,
embrulhado num guardanapo, que ato pelas quatro pontas e que enfio no meu
varapau.
Nas eiras colaboro na debulha, tomando as rédeas de
esparto das duas velhas éguas intonsas e ossudas e pondo-nos a trotar todos três,
elas adiante de mim e eu atrás delas, por cima da palha.
Tenho também relações nos moinhos, e cultivo a convivência
de moleiros obsequiosos que, quando lhes assobio, vêm em mangas de camisa ao
postiguinho, e conversam para baixo comigo acerca do vento provável para o
outro dia.[...]
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Ramalho Ortigão in "As Farpas""
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quarta-feira, 4 de abril de 2012
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