quarta-feira, 4 de abril de 2012

TRECHOS ESCOLHIDOS

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[...] Escrevo-lhes estas linhas de cima de um boi, para onde resolvi vir habitar durante o mês corrente e o mês seguinte. Separa-me do amável e discreto ruminante um ténue sobrado. Eu oiço-o mastigar pausadamente com a regularidade do tic-tac do meu cuco, ele ouve-me o ranger da pena, e raramente batemos para cima ou para baixo a pedir qualquer coisa um ao outro. A respiração dele é perfumada com o aroma do feno. Nunca cheira a caçarola suja nem a cano, como os prédios da baixa. Não escreve obscenidades na parede da escada, e—coisa que lhe perguntei antes de o vir habitar—não toca piano.
De quando em quando, pela sesta, calço os sapatos ferrados, pego no cajado que nos está ouvindo àquele canto, acendo um charuto e saio de cima do boi para percorrer as montanhas circunvizinhas.
Em alguns casais amigos permitem-me a troco do preço de meio alqueire de farinha o prazer de amassar eu mesmo o meu pão, de o enrolar, de o meter ao forno e de o trazer às costas para casa, daí a dez minutos, embrulhado num guardanapo, que ato pelas quatro pontas e que enfio no meu varapau.
Nas eiras colaboro na debulha, tomando as rédeas de esparto das duas velhas éguas intonsas e ossudas e pondo-nos a trotar todos três, elas adiante de mim e eu atrás delas, por cima da palha.
Tenho também relações nos moinhos, e cultivo a convivência de moleiros obsequiosos que, quando lhes assobio, vêm em mangas de camisa ao postiguinho, e conversam para baixo comigo acerca do vento provável para o outro dia.[...]

Ramalho Ortigão in "As Farpas""
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