Para o que tenho a dizer, não preciso
do discurso que preparei; mas preciso de contar uma história tosca — tosca é a forma da história, não a história propriamente
dita.
Em 11 de Janeiro de 1672, Isaac Newton
fez uma demonstração do "seu" telescópio reflector, com espelhos em
vez de lentes — como o de Galileu — na British Royal Society. A sua jactância foi de imediato
contestada por dois janotas, hoje ilustres desconhecidos, a saber: James
Gregory e Laurent Cassegrain — não
interessam e passamos à frente.
Mais importante é o facto de que a
ideia de usar espelhos curvos nos telescópios já tinha mais de 1.500 anos
quando Newton ainda usava fralda. E ainda o de que a construção de um
telescópio reflector tinha sido levada a cabo mais de 50 anos antes dele
perorar na British Royal Society!
Aliás, essa coisa do princípio dos
telescópios reflectores já havia sido trabalhada pela cabeça de Hero de Alexandria, no Século I. Hero demonstrou que um espelho parabólico podia concentrar raios
paralelos, criando uma imagem. Quase todos os dias vemos a ideia de Hero nas
antenas parabólicas de TV que "decoram" os telhados das casas — muito lindas!
A propriedade de focar dos espelhos
curvos era falada pelo persa Abu Saʿd al-ʿAlaʾ ibn Sahl, no Século X, num
tratado intitulado "Sobre Espelhos e Lentes Queimadores", ou uma pessegada
parecida. E Leonardo da Vinci (sempre na
brecha!) também tratou disso em vários escritos. E o astrónomo italiano Niccolò Zucchi, na Optica philosophia (1652), falava
de um telescópio que tinha construído, em 1616, com um espelho de bronze curvo.
Parece que não era grande espingarda, mas era um telescópio.
E, em
1636, Marin Mersenne, na obra Harmonie universelle,
fala pela primeira vez num telescópio reflector com dois espelhos. E só
em 1668, ou coisa próxima, é que aparece
Newton com um telescópio reflector, de espelho curvo feito de liga de cobre, arsénico e mais uma
cangalhada que ele inventou.
Hoje, todos os grandes observatórios astronómicos,
incluindo o Telescópio Espacial Hubble, usam óptica reflectora. A quem se deve tal geringonça? A Hero? A Abu Saʿd al-ʿAlaʾ ibn Sahl? A
Zucchi? A Newton? A Marin Mersenne? A Jorge Jesus? A Jerónimo de Pirescoxe? A
Marcelo?
Para qualquer grande invenção é
arriscado atribuir a respectiva paternidade. Cada vez mais as coisas são
inventadas por muita gente, por vezes gente que nem se conhece. Em boa
verdade, o melhor é considerar que tudo inventado na superfície do
planeta Terra é inventado pelo Homo
sapiens, tout court.
É menos arriscado e mais justo. Henrique "O Navegador" descobriu muitas coisas? Ou quem descobriu foram os marinheiros que morreram com escorbuto, malária, lepra, sífilis, frechadas, catanadas e até fome?
.
Este texto foi
adaptado do ensaio "How many great minds does it take to invent a telescope? " (Quantas grandes mentes são necessárias para inventar um telescópio?) da autoria de Thony Chriette,
historiador de Ciência.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário