Querido Amigo .—Cumpro enfim a promessa feita na sua erudita ermida das Águas Férreas, naquela manhã de Março em que conversávamos ao sol sobre o carácter dos Antigos,—e remeto, como documento, a fotografia da múmia de Rameses II (que o francês banal, continuador do grego banal, teima em chamar Sesóstris), recentemente descoberta nos sarcófagos reais de Medinet-Abou pelo professor Maspero.
Caro Oliveira Martins, não acha V. picarescamente sugestivo
este facto—Ramsés fotografado ?... Mas aí está justificada a mumificação dos
cadáveres, feita pelos bons Egípcios com tanta fadiga e tanta despesa, para que
os homens gozassem na sua forma terrena, segundo diz o Escriba, «as vantagens
da Eternidade!» Rameses, como ele acreditava e lhe afirmavam os metafísicos de
Tebas, ressurge efectivamente «com todos os seus ossos e a pele que era sua»,
neste ano da Graça de 1886. Ora 1886, para um Faraó da décima-nona dinastia,
mil e quatrocentos anos anterior a Cristo, representa muito decentemente a Eternidade e a Vida Futura . E eis-nos
agora, podendo contemplar as «próprias feições» do maior dos Ramesidas, tão
realmente como Hokem seu Eunuco-Mor, ou Pentaour seu Cronista-Mor, ou aqueles
que outrora em dias de triunfos corriam a juncar-lhe o caminho de flores,
trazendo «os seus chinós de festa e a cútis envernizada com óleos de Segabai».
Aí o tem V. agora diante de si, em fotografia, com as pálpebras baixas e
sorrindo. E que me diz a essa face real? Que humilhantes reflexões não provoca
ela sobre a irremediável degeneração do homem! Onde há aí hoje um, entre os que
governam povos, que tenha essa soberana fronte de calmo e incomensurável
orgulho; esse superior sorriso de omnipotente benevolência, duma inefável
benevolência que cobre o Mundo; esse ar de imperturbada e indomável força; todo
esse esplendor viril que a treva de um hipogeu, durante três mil anos, não
conseguiu apagar? Eis aí verdadeiramente um Dono de homens ! Compare esse
semblante augusto com o perfil sorno, oblíquo e bigodoso dum Napoleão III; com
o focinho de buldogue acorrentado dum Bismarque; ou com o carão do Czar russo,
um carão parado e afável que podia ser o do seu Copeiro-Mor. Que chateza, que
fealdade tacanha destes rostos de poderosos! [...]
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