segunda-feira, 21 de junho de 2010

HISTORIADOR E PROSADOR

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A MORTE DE D. JOÃO VI
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S. M.. fora a Belém comer uma merenda. Era nos primeiros dias de Março. Quando voltou a palácio achou-se, à noute, mal — cãibras, sintomas de epilepsia. Vieram médicos: o barão de Alvaiázere e o valido cirurgião Aguiar. No dia seguinte o estado do enfermo piorou, e o rei decidiu-se a despir de si o pesado encargo do governo. A 7, a Gazeta publicava o decreto nomeando a regência, presidida pela infanta D. Isabel Maria cuja bondade merecia as graças particulares do infeliz pai. «Esta minha imperial e real determinação», afirmava o decreto do dia 6, «regulará também para o caso em que Deus seja servido chamar-me à sua santa glória, enquanto o legítimo herdeiro e sucessor desta coroa não der as suas providências. . . » Mas quem era esse legítimo herdeiro? D. Pedro, o brasileiro? D. Miguel, no seu desterro de Viena? Não o dizia o rei moribundo, que toda a vida se achara indeciso, e acabava como tinha existido, sem uma afirmação de vontade, entre flatos, na impotência de uma morte oportuna.
Em Lisboa corriam os boatos mais extravagantes. O velho imperador sem império, rei de dois mundos já reduzidos ao que ele chamava o seu canapé da Europa, massa humana estendida num leito, era como um valo ou barreira que represava a torrente de ambições e fúrias soltas ou mal contidas em 20, em 23, em 24. O caos de conflitos dinásticos, religiosos, politicos, que a fome universal acirrara, ia reaparecer à luz do dia— tão depressa o caixão do imperador-rei terminasse a viagem mortuária, do paço, a S. Vicente-de-Fora.
Logo que a noticia da doença se propagou, e, mais ainda, quando apareceu o decreto do dia 6, correu uma opinião forte. D. João VI tinha sido envenenado. A peçonha fora propinada nas laranjas da merenda de Belém; embora o dessem por vivo, era cadáver quando saiu o decreto. Conservavam-no para enganar, para preparar melhor os ânimos. Mas quem era o autor de tamanhos crimes? A rainha, diziam os constitucionais de então. Os constiticionais, diziam os absolutistas apostólicos. Entretanto a rainha era esbulhada da regência, e, se tramara o feito, saía-se duas vezes mal — por isto, e porque à indecisão do decreto responderam o consenso geral e os regentes proclamando rei o brasileiro.
No dia 10 pela tarde morreu o rei, oficial ou realmente. Houve sentimento e lágrimas, porque na sua moleza insípida era bom; sobretudo porque deixava depois de si um vácuo, uma sombra povoada de medos das inevitáveis catástrofes amontoadas e iminentes. Este susto agravava a maledicência geral. Ninguém já punha em dúvida a causa da morte do rei. Os boatos eram positivas certezas—de que o parecer dos médicos depois da autópsia concluira pelo envenenamento. Em tudo se achavam provas. Os absolutistas afirmavam cerradamente que o cozinheiro Caetano fora convidado pelos constitucionais, e que por se recusar morrera com o veneno destinado para o rei: com efeito o cozinheiro caiu de repente. Por outro lado, atribuíam-se confissões graves ao barão de Alvaiázere que também morrera logo; e o cirurgião Aguiar, sobre quem recaíam as acusações de ter propinado o veneno dos pedreiros-livres, o cirurgião valido que fora brindado com um posto na diplomacia, morria também, assassinado segundo uns, suicida na opinião dos mais—devorado pelos remorsos do crime praticado contra o seu benfeitor ! [...]
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Oliveira Martins in "Portugal Contemporâneo"

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