quarta-feira, 30 de junho de 2010

O CHIADO DO CHIADO


[...] O meu falecido amigo visconde de Alenquer, que era um gentleman distintíssimo, primoroso em maneiras e acções, além de ser um bibliófilo digno de apreço e consulta, tomou tanto gosto pelas obras do padre José Agostinho de Macedo, que passou a maior parte da existência a coleccioná-las por bom preço e a muito custo.
Contudo, havia tanta disparidade entre o carácter de um e do outro, porque o autor dos Burros foi o mais atrabiliário, inconstante e perigoso homem de letras de todo o nosso Portugal, que o visconde de Alenquer, se houvesse sido contemporâneo do padre José Agostinho, nunca teria podido ser seu amigo, nem seu defensor, nem jamais o quereria ver em intimidade de portas a dentro.
Pela minha parte, também sou obrigado a confessar um semelhante fraco, não pelo mesmo padre, mas por outro que, sob o ponto de vista da disciplina monástica e da dignidade sacerdotal, não valia mais. Refiro-me ao franciscano António Ribeiro, o Chiado, que também despiu o hábito e foi tunante irrequieto, sendo igualmente homem de letras.
Até 1889, ano em que logrei dar a lume às suas obras, quase perdidas, e geralmente desconhecidas, custou-me o Chiado bom trabalho e canseiras para ressuscitá-lo aos olhos do grande público em toda a sua individualidade literária. De então para cá não deixei de pensar nele a investigar-lhe a biografia, que é das mais obscuras e complicadas, e a procurar aquelas de suas obras que até 1889 não consegui haver à mão por mais que as desejasse e buscasse.
Alguma coisa achei neste lapso de onze anos. Não é tudo ainda. Mas não perdi o tempo, nem parei, porque me repugna a inércia, e porque, verdade-verdade, tomei gosto ao Chiado, que não foi um vulto proeminente nas letras, mas que tem relevo como boémio e dizedor, como trovista alegre e zombeteiro, farçante popularissimo, que a praça pública aplaudia e que os escritores mais notáveis não desconsideravam.
Outros meus contemporâneos têm consagrado todo o seu tempo ao Chiado rua, e talvez esses se riam de mim, que prezo mais o literato do que o Regent Street alfacinha.
Todavia, cumpre adverti-los de que a rua lembra o escritor, e de que foi ele, como julgo poder demonstrar agora, que deu nome á rua.
Eu já em 1889 pendia para esta opinião, conquanto, nessa época, só houvesse encontrado vestígios de que a rua tinha aquela denominação no Século XVIII.
Depois disso, alguém lembrou que já era assim chamada na primeira metade do Século XVII (1634) como se reconheceu por um documento digno de fé.
E eu próprio li, posteriormente, uma referência mais antiga, porque é relativa à primeira década do mesmo Século XVII: «Outras casas do bairro do Marquês ficavam situadas ao Chiado, quando se entra na rua Direita da Porta de Santa Catarina (1610) »
Mas hoje cuido trazer prova convincente de que foi o poeta que, por consenso espontâneo do povo, deu o nome de Chiado à antiga rua da Porta de Santa Catarina ou a parte dela.
O povo baptiza melhor do que a Câmara Municipal, porque baptiza com mais acerto, quase sempre com inteira razão de ser; por isso, nome que ele ponha, pega, fica, perdura.
E, não obstante a Câmara Municipal mudar em 1880 o nome à rua, de Chiado para Garrett, o povo não quis saber de reviravoltas de letreiros nas esquinas: continua a chamar-lhe Chiado; Chiado é que é, porque o povo quer que seja assim.
[...]
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Alberto Pimentel in "O Poeta Chiado" (1903)
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