quinta-feira, 3 de junho de 2010

O NATAL DE FIALHO

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...dia de Natal, eu que conheço toda a gente, não tive ninguém que me dissesse “anda jantar”. Vinguei-me saindo de casa, e engajando os primeiros va-nu-pieds eventuais. Dois pobres do asilo, os uniformes sem nódoas, pouco bêbedos. Marchámos para o Augusto, e na sala comum, a uma de cujas mesas nos sentámos, houve reboliço por banda das meretrizes e irregulares que mais alegres do que eu, ali tinham ido fazer o seu jantar de festa, em partie fine. Não descrevo a comida, registando apenas o trabalho gasto em despersuadir os meus dois comensais de não meterem no bolso os restos de cada prato do festim. À sobremesa, um deles, bêbado, como eu o fitava com uma piedade cristã de filho pródigo, confiou-me que estivera quatro anos na África, por um roubo, e o conselheiro X o metera no asilo, havia sete meses O outro era um velhinho abaulado, olhos de doido irónico, que fugiam, falando pouco; mas todo o jantar o suspeitei de celerado, tanto os seus monossílabos humildes, e os seus contínuos escrúpulos de consciência lhe davam o ar dum homem de bem. À despedida, o mais velho chamou-me conde, e o mais novo, doutor, sem acertarem, e lá foram cambaleando, a rogar pragas a quem lhes fizera o serviço de lhes meter no crânio a apoplexia. Pobres malandros! deixai o meu egoísmo abusar da vossa fome. Sem vós, eu não poderia dizer, como toda a gente “Jantei hoje o natal com dois amigos velho”.
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Fialho de Almeida
in "Os Gatos"
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