[...] À volta de uma mesa do café Martinho, em Lisboa, estavam, por 1857, cinco ou seis sujeitos saturados de política. Estava também eu em princípio de saturação — palavra pedida de empréstimo à química para bem materializar a ideia do corpo abeberado daquele cívico entusiasmo que salva as nações... nos botequins.
Naquela noite, os meus interlocutores eram todos mais ou menos republicanos. Havia tal que dizia acreditar na metempsicose, porque sentia dentro do seu ventre os fígados de Robespierre; e outro, que arredondava musicamente os períodos corrosivos, revelava-nos, com modéstia parelha do talento, que sentia coriscar-lhe no crânio o cérebro de Mirabeau; — coriscos, se o eram, todos para dentro; que do fogo, que lhe faiscava da fronte, não havia que recear combustão em armazém de sulfureto de carbónio.
Os outros não me lembra quem tinham dentro de suas pessoas.
Pelo que me diz respeito, recenseando longa fileira de defuntos históricos, suspeitei ser eu a paragem de dois pedaços transmigrados, um de Falstaff, outro de Sancho, por me sentir rasamente lerdo à beira daquelas pessoas trabalhadas por crudelíssimas almas de torna-viagem. [...]
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[...] Havia ali um que esmurraçava o mármore das mesas, protestando que os tronos seriam aluídos, quando a lava, escandecente no seio da Liberdade, irrompesse, resfolegando para si os monarcas, e revessando para fora, com o novo baptismo de fogo, uns evangelhos novos.
O meu terror foi grande. Encarei naqueles homens exterminadores, e agourei-lhes mentalmente que morreriam justiçados para descanso do género humano, e particularmente dos possuidores de inscrições e outros fundos.
Agora é de saber que todos aqueles regicidas, hoje em dia, vampirizam as veias desangradas do país, pisam alcatifas do paço, e fumam, nos aposentos dos camaristas, charutos da munificência real, pelos quais se lhes vaporaram os fígados de Robespierre, o encéfalo de Mirabeau, e toda a mais peçonha que lhes petrolizava as entranhas, tirante a do estômago, que ainda é corrosiva, como sempre. [...]
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Camilo Castelo Branco in "O Carrasco de Victor Hugo José Alves"
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Naquela noite, os meus interlocutores eram todos mais ou menos republicanos. Havia tal que dizia acreditar na metempsicose, porque sentia dentro do seu ventre os fígados de Robespierre; e outro, que arredondava musicamente os períodos corrosivos, revelava-nos, com modéstia parelha do talento, que sentia coriscar-lhe no crânio o cérebro de Mirabeau; — coriscos, se o eram, todos para dentro; que do fogo, que lhe faiscava da fronte, não havia que recear combustão em armazém de sulfureto de carbónio.
Os outros não me lembra quem tinham dentro de suas pessoas.
Pelo que me diz respeito, recenseando longa fileira de defuntos históricos, suspeitei ser eu a paragem de dois pedaços transmigrados, um de Falstaff, outro de Sancho, por me sentir rasamente lerdo à beira daquelas pessoas trabalhadas por crudelíssimas almas de torna-viagem. [...]
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[...] Havia ali um que esmurraçava o mármore das mesas, protestando que os tronos seriam aluídos, quando a lava, escandecente no seio da Liberdade, irrompesse, resfolegando para si os monarcas, e revessando para fora, com o novo baptismo de fogo, uns evangelhos novos.
O meu terror foi grande. Encarei naqueles homens exterminadores, e agourei-lhes mentalmente que morreriam justiçados para descanso do género humano, e particularmente dos possuidores de inscrições e outros fundos.
Agora é de saber que todos aqueles regicidas, hoje em dia, vampirizam as veias desangradas do país, pisam alcatifas do paço, e fumam, nos aposentos dos camaristas, charutos da munificência real, pelos quais se lhes vaporaram os fígados de Robespierre, o encéfalo de Mirabeau, e toda a mais peçonha que lhes petrolizava as entranhas, tirante a do estômago, que ainda é corrosiva, como sempre. [...]
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Camilo Castelo Branco in "O Carrasco de Victor Hugo José Alves"
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