Oliveira Martins in "História de Portugal"
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
O CONQUISTADOR
.
[...] A erudição lançou para o campo das lendas os
episódios tradicionais do tempo de Afonso Henriques; mas a história não pode
desprezar esses traços pitorescos com que o povo retrata, infiel mas
tipicamente, as tendências e os costumes. Sabe-se a história do bispo negro de
S. Cruz de Coimbra; e os monumentos remotos contam o que Afonso Henriques, se
não fez, poderia ter feito ao legado que veio de Roma excomungá-lo por se ter
levantado contra a mãe, pela ter metido a ferros e não a querer soltar—segundo
reza a crónica. Era homem «muy bravo de grande coraçom» o príncipe a quem a
rebeldia do clero irritava. Foi esperar o legado ao Vimieiro, chegou-se a ele,
travou-lhe do cabeção, sacou da espada e quisera cortar-lhe a cabeça. Os cavaleiros
do rei acudiram: «Dirão em Roma que sois herege!» O cardeal tremia de medo, o
rei de cólera, mas baixou a espada e voltou: «Pois quero que Portugal não seja
excomungado em todos os meus dias e que não leveis daqui ouro, nem prata, nem
bestas, senão três!» E prosseguia exigindo uma carta de Roma garantindo a posse
«d'isto (Portugal) ca eu o ganhei com esta minha espada.» O sobrinho do cardeal
ficaria em refém: teria a cabeça cortada se a carta não viesse em quatro meses.
O cardeal,
diz-se, prometeu, anuindo a tudo; e o leitor sabe, pelo modo como
lhe contámos os pactos de Zamora, qual é a verdade que esta cena pitoresca
exprime. O rei que «em sua mancebia foi muito bravo e esquivo,» prossegue a
lenda, feitas as pazes, disse ao cardeal: «Agora vede como sou herege!» E
despindo-se, mostrou-lhe as feridas de todo o corpo, contando-lhe as batalhas
em que as tinha havido. Resolvida a contenda, satisfeita a cobiça, aplacada a
cólera, aparecia depois do guerreiro violento o homem tímido e crente, com a
visão do inferno e o terror da excomunhão. [...]
Oliveira Martins in "História de Portugal"
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