Esta coisa de Babel, ou das línguas, é complicada.
Percebe-se que grandes grupos
populacionais viveram completamente isolados há muitos—e por muitos—anos e,
sendo a linguagem uma aptidão congénita inevitável porque está prevista no
hardware dos nossos encéfalos, cada grupo tenha inventado uma maneira de
comunicar própria e um pouco diferente dos outros. Digo pouco diferente, uma
vez que—como já referi em tempos—há estudos a mostrar serem as gramáticas todas
parecidas em linhas gerais (a gramática está nos genes, não é de criação
livre). Depois veio o contacto entre povos, a influência mútua entre as
línguas e tal facto iniciou um processo—em curso—que levará, quase
inevitavelmente, daqui a milhares, ou milhões, de anos à uniformização da fala
e da escrita. Lembrei-me disto ao ler uma laracha sobre Shakespeare onde se
fala de expressões da língua inglesa provavelmente inventadas por ele há mais
de quatro séculos, mas que têm correspondência quase literal em português, ou
já foram adoptadas na propria língua do bardo. Por exemplo "fair
play".
Na peça "Tempestade", de 1610, Miranda diz "Yes for a score of kingdoms
you should wrangle /And I would call it fair play", ou seja, traduzindo
livremente: "Sim, para o posicionamento correcto dos reinos, deves discutir/
E eu acharia isso comportamento correcto". A expressão é usada em todo
o mundo, por vezes já com grafia local.
Ainda na mesma peça, o palhaço Trínculo diz a página s
tantas: ""I have been in such
a pickle since I saw you last". To be in a pickle é estar em apuros,
estar numa alhada, naturalmente.
No "Mercador de Veneza", Jessica diz: "I am much ashamed of my
exchange / But love is blind and lovers cannot see / The pretty follies that
themselves commit"; o mesmo que "Estou envergonhada com a minha
inconstância/Mas o amor é cego e os amantes não vêem/As tolices que fazem".
O amor é cego! É difícil acreditar que tenha sido preciso esperar por Shakespeare
para perceber tal coisa!
Na mesma peça, Portia deseja ao Príncipe de Marrocos
"a gentle riddance", que significa, quase literalmente, livrar-se de
boa. Também cheira a prosápia inglesa dizer que o Bardo inventou tal imagem.
E, por fim, uma expressão shakespeariana a propósito do
XVIII Governo Constitucional do Reino, perdão, da República de Portugal: "A
sorry Sight"—tal e qual: "Uma triste figura"*
* Shakespeare não conhecia Passos Coelho!
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