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Raquel Freire, famosa realizadora de que nunca ouvi falar, decidiu queimar
uma cópia do seu filme Rasganço em "protesto radical" (sic) contra a suspensão
dos apoios às artes. Enquanto muitos lamentam que a dona Raquel não tenha
queimado o original, convinha que alguém informasse a senhora de que os apoios
às artes, ou àquilo que a senhora entende por "artes", não foram suspensos. Pelo
contrário, o mesmo Parlamento junto ao qual a dona Raquel alimentou as
tendências pirómanas acabou de aprovar sem um único voto discordante a proposta
do Governo para uma taxa adicional sobre os operadores de televisão por cabo, a
fim de financiar o extraordinário cinema indígena. Não vale a pena notar a
ironia presente no facto de que, em última instância, serão os subscritores a
pagar os produtos de que fugiam quando assinaram os serviços do "cabo".
Mas vale a pena presumir que a dona Raquel conhece a nova lei, embora prefira
fingir que não de modo a manter intactos os arrebatadores clichés do seu
discurso: "Ser artista é uma questão existencial para mim."; "(...) não vou
desistir. Por isso tenho que resistir."; "Apesar de este ser um país de brandos
costumes, é preciso reagir."; "Queimar uma obra de arte é uma metáfora do que se
está a passar."; "Ao extinguir a cultura está-se a suprimir a identidade de um
povo."; "(os artistas) perturbam, fazem pensar, questionam."
Realmente, tamanha enxurrada de tolices perturbou-me, a completa ausência de
noção do ridículo fez-me pensar que espécie de cabecinha funciona assim e a
arrogância infantil levou-me a questionar se, afinal, a dona Raquel não teria
doze ou treze anos. Fui averiguar: tem 39. E já não tem emenda.
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Alberto Gonçalves in "Diário de Notícias"
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domingo, 15 de julho de 2012
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