domingo, 15 de julho de 2012

UMA QUESTÃO EXISTENCIAL

.
Raquel Freire, famosa realizadora de que nunca ouvi falar, decidiu queimar uma cópia do seu filme Rasganço em "protesto radical" (sic) contra a suspensão dos apoios às artes. Enquanto muitos lamentam que a dona Raquel não tenha queimado o original, convinha que alguém informasse a senhora de que os apoios às artes, ou àquilo que a senhora entende por "artes", não foram suspensos. Pelo contrário, o mesmo Parlamento junto ao qual a dona Raquel alimentou as tendências pirómanas acabou de aprovar sem um único voto discordante a proposta do Governo para uma taxa adicional sobre os operadores de televisão por cabo, a fim de financiar o extraordinário cinema indígena. Não vale a pena notar a ironia presente no facto de que, em última instância, serão os subscritores a pagar os produtos de que fugiam quando assinaram os serviços do "cabo".
Mas vale a pena presumir que a dona Raquel conhece a nova lei, embora prefira fingir que não de modo a manter intactos os arrebatadores clichés do seu discurso: "Ser artista é uma questão existencial para mim."; "(...) não vou desistir. Por isso tenho que resistir."; "Apesar de este ser um país de brandos costumes, é preciso reagir."; "Queimar uma obra de arte é uma metáfora do que se está a passar."; "Ao extinguir a cultura está-se a suprimir a identidade de um povo."; "(os artistas) perturbam, fazem pensar, questionam."
Realmente, tamanha enxurrada de tolices perturbou-me, a completa ausência de noção do ridículo fez-me pensar que espécie de cabecinha funciona assim e a arrogância infantil levou-me a questionar se, afinal, a dona Raquel não teria doze ou treze anos. Fui averiguar: tem 39. E já não tem emenda.
.
Alberto Gonçalves in "Diário de Notícias"
.

Sem comentários:

Enviar um comentário