Literatura é linguagem escrita. Até aqui, não há muitas
dúvidas. Mas nem toda a linguagem escrita é literatura. Também sobre isto não
ficam dúvidas. Então, qual a diferença, ou seja, o que faz duma peça de
linguagem escrita literatura?
É o facto de estar incluída num livro de ficção,
"oficialmente" rotulado de literatura, ou numa revista dita literária,
ou na secção de literatura dum jornal? Não é. Há coisas escritas nas paredes —
até das instalações sanitárias — que são literatura, e há coisas muito bem encadernadas
que são lixo tipográfico. Contudo, poucos se aventuram a definir — ou tentar
definir — literatura, muitas vezes apenas porque acham que defini-la pode
tirar-lhe dignidade e prestígio. São sobretudo os cabotinos que assim pensam
para alimentar o instrumento de camuflagem da mediocridade. (Aqui há dias transcrevi uma peça dum crítico de arte, exemplo perfeito do que digo).
Evelyn Waugh, um dos grandes prosadores de língua inglesa,
diz assim: "Literatura é o uso correcto da linguagem escrita,
independentemente do assunto tratado, ou da forma". E acrescenta: "O uso
correcto, que a distingue do lixo
tipográfico (expressão minha), é a lucidez, a elegância e a individualidade.
Estes são os três traços que fazem dum trabalho de escrita literatura — não tem
de rimar ou contar uma história: pode ser um currículo, um manual de instruções,
ou um trabalho de Filosofia Analítica. (Suspeita-se que Waugh não tem a Filosofia
Analítica em grande conta).
A lucidez referida não tem a ver com clareza, ou
facilidade de compreensão — corresponde à visão inteligente do autor sobre uma
matéria, eventualmente complicada e difícil de entender. Elegância, segundo o
escritor, é a capacidade do objecto artístico despertar prazer a quem o
desfruta. A individualidade é naturalmente o estilo próprio, original,
diferente do "Diário da República", cujo estilo monótono e repetitivo sacrifica intencionalmente
a forma estética ao rigor jurídico.
Se pegarmos, por exemplo, em Eça de Queirós, encontramos
lá tudo isto: a lucidez na análise
política e social, que nos ajuda ainda hoje a compreender os Zezitos, os Almeidas
Santos e por aí fora; a elegância — é preciso ser muito bronco para não
encontrar prazer ao ler as descrições de Teodorico Raposão, Dâmaso Salcedo, ou do
Conselheiro Acácio; e a individualidade —
até eu sou capaz de identificar um texto de Eça não assinado no meio de outros
(excluindo uns tantos inspirados, quase capazes de escrever como ele, verbi
gratia, Artur Portela Filho).
.
Sem comentários:
Enviar um comentário