[...] Se não erro, em 2005 os poderes públicos tinham
acabado de construir uma resma de úteis campos da bola (e organizado o
"melhor Europeu da História"), planeado o TGV e prometido o futuro
aeroporto de Lisboa, entre outros desígnios nacionais que nos haveriam de
conduzir à felicidade eterna. Os tempos, pois, eram risonhos, tão risonhos que
o facto de o número de pobres de então superar o actual não incomodava ninguém,
ou quase ninguém. E achava-se importantíssimo lembrar que os portugueses,
incluindo os menos afortunados, não são números: são pessoas. [...]
[...] Infelizmente,
as pessoas em causa vêem-se transformadas em números logo que os seus alegados
paladinos necessitam de agitar estatísticas. As dramáticas condições de vida de
perto de dois milhões de cidadãos, de resto uma quantidade relativamente
estável ao longo da última década, constituem a garantia de uma vida desafogada
para as centenas ou milhares que "combatem" a pobreza como se o
salário deles dependesse disso.
E o engraçado é
que depende. Não falo dos sindicatos, que há muito desistiram de investir conversa
fiada nos desvalidos e passaram a ocupar-se dos funcionários do Estado. Nem
falo das organizações caritativas, religiosas ou laicas, as quais, com boas ou
duvidosas intenções, conseguem alimentar e vestir quem precisa. Falo das
fundações, redes, associações e "observatórios" (?) dedicados, assaz
naturalmente, a observar a desigualdade e a pobreza - à distância, claro.
Não gostaria de
ofender essas prestimosas entidades, mas desconfio do empenho em salvar os
pobres quando os salvadores carecem dos mesmos para se alimentar, vestir, pagar
a renda, viajar (os voos para reuniões em Bruxelas são indispensáveis) e, em
suma, existir. Se não faz sentido um observador de pássaros pretender dizimar
as populações de rouxinóis, estorninhos e toutinegras, também não se
compreenderia que os observadores da pobreza desejassem genuinamente a
erradicação desta. Ou, se quisermos um exemplo familiar ao capitalismo
"selvagem" que tanta indignação suscita, seria estranhíssimo que a
Pizza Hut se mostrasse preocupada com o avolumar de apreciadores de queijo
derretido.
Donde a perversidade da retórica em voga: espreita-se o "telejornal" e leva-se com "técnicos" autodesignados para "analisar" os pobres (da maneira que se analisa os aminoácidos), enquanto desfiam percentagens que "provam" o respectivo crescimento (a pobreza, nova ou velha, envergonhada ou indecente, escondida ou escancarada, cresce independentemente das circunstâncias). A terminar, lançam meia dúzia de "conclusões", embora sobretudo concluam a urgência em reforçar os apoios às fundações, redes, associações e "observatórios" a que pertencem. A observação da pobreza não pode ficar entregue a pés-rapados.
Donde a perversidade da retórica em voga: espreita-se o "telejornal" e leva-se com "técnicos" autodesignados para "analisar" os pobres (da maneira que se analisa os aminoácidos), enquanto desfiam percentagens que "provam" o respectivo crescimento (a pobreza, nova ou velha, envergonhada ou indecente, escondida ou escancarada, cresce independentemente das circunstâncias). A terminar, lançam meia dúzia de "conclusões", embora sobretudo concluam a urgência em reforçar os apoios às fundações, redes, associações e "observatórios" a que pertencem. A observação da pobreza não pode ficar entregue a pés-rapados.
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Alberto Gonçalves in "Diário de Notícias"
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