Francisco José Viegas escreve hoje, na sua habitual crónica no "Correio da Manhã", sobre o ensino da língua pátria. Termina assim:
[...] A tese é simples: só lendo e estudando os bons
textos se aprende a escrever e a falar sem erros. Uma parte do ensino da língua
é feito por osmose, sim, e pelo contacto com a literatura, que vários génios
recentes já tentaram afastar do ensino da língua, com o notável resultado que
se conhece: um empobrecimento crescente do Português das novas gerações (e, já
agora, da literatura). Este debate faz falta.
Não posso estar mais de acordo com o cronista. A
juventude—mesmo a universitária—escreve quase só em dispositivos electrónicos,
com ortografia e sintaxe Vodafone. Aliás, face a tal fenómeno,
pergunta-se mesmo se a luta pró ou contra acordo ortográfico faz sentido porque
já não nem se escreve segundo as regras velhas, nem segundo as regras novas. Mas
nem é esse o problema. O problema é a incapacidade de exprimir com clareza a
ideia mais simples; para não falar de um singelo encadeamento de ideias. Tal só
se aprende lendo e ouvindo quem o sabe fazer. E é preciso recuperar o gosto
perdido pela prosa e pelo estilo.
Atente-se no excerto de Camilo, a seguir transcrito e tirado ao acaso do romance "A Brasileira
de Prazins"—uma delícia literária. É claro que o brilho é também fruto da
criatividade da narração; mas o estilo, habitual em Camilo, é soberbo.
[...] Pedi que me apresentassem ao reitor de Caldelas na
feira de Santo Urso. Achei-lhe um semblante convidativo, animador a entabular-se com ele
uma indagação de curiosidades sentimentais.
Fazia respeitável a sua batina sem nódoas o padre Osório.
Parece que também as não tem na vida. Passa por ser um velho triste, que não teve mocidade,
nem as ambições que suprem os doces afectos do coração mutilados pelo cálculo ou congelados pelo temperamento.
Há trinta e dois anos que pastoreia uma das mais pobres freguesias do
arcebispado. Pregou alguns anos com aplauso dos entendidos e inutilidade dos
pecadores. A retórica é a arte de falar
bem; mas os vícios são a arte de viver bem e alegremente. Assim se pensa,
embora não se diga.
Como pregava gratuitamente, o vigário de Caldelas era
chamado por todos os mordomos e confrarias
festeiras. Quando se esgotavam os panegíricos dos santos mais ou menos
hipotéticos, pediam-lhe que pregasse da cura
milagrosa de umas maleitas ou de um leicenço – casos que a pobre Natureza e o
periódico chamado Esculápio só de per si não poderiam explicar.O vigário subia ao púlpito e improvisava coisas de grande
engenho em linguagem muito singela. Afirmava
que Deus era tão bom, tão previdente, que dera à condição enfermiça do
homem forças vitais, sobresselentes que resistiam
à destruição; e que a Natureza, grande milagre do seu Criador, só de per si era
bastante para a si mesma se restaurar.
Ora, um abade rico, bacharel em Teologia, que
lhe ouvira estas ideias assaz naturalistas, perguntou-lhe, à puridade, se ele negava os milagres. O reitor
respondeu que a respeito das sezões e dos leicenços acreditava mais na lanceta e no sulfato de quinino. Depois,
acrescentou: – Deus fez o supremo milagre da ciência para centuplicar as forças à natureza enfraquecida. – O teólogo
enrugou cientificamente a fronte cheia de suspeitas e replicou: – O Senhor Reitor foi ferido da peste do século. Está
iscado de Voltaire e de Alexandre Herculano. Deixou-se contaminar. Mundifique-se. Estude mais e
melhor. – O reitor de Caldelas afastou-se triste, e nunca mais frequentou o púlpito. [...]
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