Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o
pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O
pároco era um homem sanguíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano
pelo comilão dos comilões. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade.
O Carlos da Botica - que o detestava - costumava dizer, sempre que o via sair
depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:
- Lá vai a jibóia esmoer. Um
dia estoura!
Com efeito estourou, depois de
uma ceia de peixe - à hora em que defronte, na casa do doutor Godinho que fazia
anos, se polcava com alarido. Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu
enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos
de um cavador, a voz rouca, cabelos nos ouvidos, palavras muito rudes.
Nunca fora querido das
devotas; arrotava no confessionário, e, tendo vivido sempre em freguesias da
aldeia ou da serra, não compreendia certas sensibilidades requintadas da
devoção: perdera por isso, logo ao princípio, quase todas as confessadas, que
tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de lábia!
E quando as beatas, que lhe
eram fiéis, lhe iam falar de escrúpulos de visões, José Miguéis
escandalizava-as, rosnando:
- Ora histórias, santinha!
Peça juízo a Deus! Mais miolo na bola!
As exagerações dos jejuns
sobretudo irritavam-no:
- Coma-lhe e beba-lhe,
costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, criatura! [...]
.
In "O Crime do Padre Amaro"
.
Sem comentários:
Enviar um comentário