Há uma história filosófica—que em tempos já contei—acerca de um automóvel. João tinha um carro
velho e todas as semanas ia à oficina repará-lo, substituindo peças. António, o
mecânico, consertava e guardava as peças velhas. Ao fim de alguns anos, o carro
do João não tinha nenhuma peça de origem. António acabou por reconstruir o automóvel
com as peças velhas consertadas. A pergunta é: qual o carro original? É o do mecânico
António, naturalmente, embora João seja o detentor dos seus documentos de
registo e propriedade.
A que propósito vem esta
laracha?—perguntar-se-á. Acontece que quando nascemos somos detentores de um
património de células constituídas por milhões de átomos: ≈ 7x 10^27. Em poucos anos, todas essas estruturas foram
substituídas por outras e o fenómeno repete-se ao longo da vida muitas vezes.
Isto é, além da personagem original, somos uma série enorme de personagens
diferentes. Quando morremos, não temos nenhum dos átomos originais, podendo
ocorrer uma coincidência extraordinária apenas com alguns que voltam. Somos
outros? Parece que não. Porquê?
O segredo está na mente,
dizem—resiste e dá-nos unidade, admite-se. Sendo assim, no fundo o que nos
caracterizará não é a morfologia, mas a função, neste caso a cerebral. A individualidade
é um conjunto de memórias.
E os doentes afectados por
perturbações da memória? Sentem-se outros? Não: pessoas que perderam grande parte da
memória—amnésia retrógrada—embora com enormes lacunas sobre as suas vidas,
mantêm o sentido do eu.
É aqui que entra a parte
ontológica do problema. Para quem acha que o descrito não tem solução racional,
resta a alma, entidade não orgânica que confere identidade na vida e mesmo depois
da morte. A fé é uma crença que não se demonstra; só se sente. E resolve muitos
problemas.
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