[...] Antes de acabar, Albuquerque
pegou da pena e dirigiu uma carta ao rei—«quando esta escrevo a V. A. estou com
um soluço que é sinal de morte!» E pedia-lhe que lhe honrasse a memória e
protegesse o filho: o que o rei fez, honra lhe seja. Agonizando, via-se
incompreendido pela tacanha corte de Lisboa, e aceitava de bom grado a morte:
«Mal com os homens por amor d'el-rei, mal com el-rei por amor dos homens, bom é
acabar». E acabou, à vista de Goa. Era homem de meã estatura, rosto comprido e
corado. Era avisado latino e de grandes ditos: falava e escrevia muito bem; mui
fácil na conversação, muito grave no mandar, muito manhoso no negociar com os
mouros, muito temido e amado de todos. Nascera filho segundo de uma família de sangue
nobre, e educara-se na corte militar de Afonso V, viveiro da geração dos
capitães da Índia amestrados nas guerras de África. Fora em 1480 na esquadra mandada
a Nápoles em auxílio do rei Fernando contra os turcos, e nove anos depois
partira para África a defender a fortaleza da Graciosa, em Larache, contra os
mouros. Era estribeiro-mor de D. João II e já um grande fidalgo quando, em
1503, D. Manuel o mandou à Índia pela primeira vez. Foi, voltou com bons créditos,
mas sem nada ter feito de singular; provavelmente observou e aprendeu muito,
levando já um plano formado quando o rei o mandou como capitão na esquadra de
Tristão da Cunha. Dessa ida começa a história que narrámos e que termina agora
com a sua morte.
Os soldados, a
bordo, amortalharam-no no hábito de Santiago com borzeguins e esporas, espada à
cinta, na cabeça uma carapuça de veludo e aos ombros uma beca também de veludo.
O enterro subiu em lanchas, e era tamanho em todos o choro e pranto, que parecia
fundir-se o rio de Goa. Ao desembarcar, foi levado aos ombros dos soldados, sob
o pálio, pelas ruas da cidade que conquistara; e os gentios, vendo-o com os
olhos meio abertos, a longa barba atada até á cinta, flutuando, não o criam
morto: Deus o chamara para alguma façanha no céu! Voltaria breve. E por muito
tempo houve romarias ao sepulcro do herói, vindo os naturais pedir-lhe justiça
contra os desmandos e perfídias dos portugueses, oferecendo-lhe boninas e
azeite para a sua lâmpada. Do extremo Oriente, desde o Pégu até á China,
ficaram-lhe chamando o Leão-do-mar.
Oliveira Martins in
"História de Portugal"
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