Sou homem de uma só palavra. O que digo agora já dizia há
vinte anos e hei-de dizer daqui a mais vinte. blá, blá, blá. Acham bem?
É claro que acham e eu também acho—mas é uma fantasia mais
ou menos careca. Na melhor das hipóteses o tal homem mantém as aparências
dizendo a mesma coisa, mas já não acredita completamente, acredita até pouco,
ou mesmo nada, no que diz. Ninguém é a mesma pessoa em cada dia que passa e é
cada vez menos quantos mais dias passam. Se falarmos em anos, então, é de cair
para o lado com o espanto.
David Hume—no Século XVIII, repare bem—dizia que a ideia
de "eu" permanente é uma ficção; e acrescentava que a nossa mente é um
molho de percepções diferentes que se sucedem
com rapidez inconcebível, em fluxo e movimento perpétuo (sic). De acordo
com Hume, o "eu" que habita o nosso corpo hoje é apenas semelhante ao
de ontem; e é também só parecido, em linhas gerais, com o de amanhã. E, o de daqui
a anos, será um completo estranho.
Que interessa esta conversa de morrinhanha? Nada?!... Não
concordo—interessa muito; mesmo tudo: é a escolha do curso, é o voto no partido,
é a opção pela carreira, é o investimento na casa, é a compra do carro, é a compra
do fato, é pau, é pedra, é o fim do caminho, é o resto de toco...
Naturalmente que há uma base mais ou menos estável no
"eu", decorrente de determinantes
genéticas e culturais, mas a margem de manobra do imprevisível é muito grande.
Dar o dito por não dito não é bonito, mas pode aceitar-se. Digamos que tem de
haver um nadinha de pudor na maneira como se muda. O janota que se bate pelas
ideias do CDS e, de repente, "faz a agulha" para as do PS está
completamente autorizado a fazê-lo—o mais possível, acrescentaria. Mas com recato
e reserva. Se aparece a defender com unhas e dentes, publicamente, com pose de
cruzado, ideias socialistas, é um cágado.
Resumindo, mudar pode—e até deve, às vezes. Mas é preciso
saber mudar e essa é a parte difícil.
..
Não me sinto mudar. Ontem eu era o
mesmo.
O tempo passa lento sobre os meus entusiasmos
cada dia mais raros são os meus cepticismos,
nunca fui vítima sequer de um pequeno orgasmo
mental que derrubasse a canção dos meus dias
que rompesse as minhas dúvidas que apagasse o meu nome.
Não mudei. É um pouco mais de melancolia,
um pouco de tédio que me deram os homens.
O tempo passa lento sobre os meus entusiasmos
cada dia mais raros são os meus cepticismos,
nunca fui vítima sequer de um pequeno orgasmo
mental que derrubasse a canção dos meus dias
que rompesse as minhas dúvidas que apagasse o meu nome.
Não mudei. É um pouco mais de melancolia,
um pouco de tédio que me deram os homens.
Pablo Neruda
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PS—Neruda andava enganado
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