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[...] Deus sabe que, entre gatos e pombos, eu sou francamente
pela primeira espécie. Acho os pombos um povo horrivelmente burguês, com o seu
ar bem-disposto e contente da vida, sem falar na baixeza de certas
características de sua condição, qual seja a de, eventualmente, se
entredevorarem quando engaiolados. Mas no caso especial da piazza de Santa
Maria Novella, devo confessar que era torcida incondicional dos pombos; e só
passei a torcer pelos gatos no final, quando, defrontado com a realidade de sua
terrível humilhação, e provável neurose subsequente, achei que não faria
nenhuma falta à comunidade a desaparição de uma meia dúzia de columbinos, em
beneficio do sistema nervoso dos pobres gatos. Pois era quase doloroso ver o
fracasso constante de suas desesperadas tentativas de caçar um pombinho que
fosse. E garanto que eles empregavam todas as técnicas tradicionais dos gatos,
desde a paciente emboscada, até a carreira às cegas, com saltos desordenados
para todos os lados.
Tudo em vão. Porque, a cada arremetida, os pombos limitavam-se a dar pequenos voos
que criavam verdadeiros túneis para os gatos, que os percorriam em furiosas e
inúteis investidas. E o pior é que cada pombo, passado o rojão, pousava como se
nada tivesse havido, e continuava na sua estúpida ciscação do chão da praça, na
mais total indiferença diante de seu velho inimigo. Coisa que, positivamente,
devia deixar os gatos loucos. Haja visto um que um dia eu vi, depois de
numerosos ataques frustrados, a morder como um possesso o pneu de um Chevrolet,
e por cuja sanidade mental não poria da maneira alguma a mão na Bíblia.Vinicius de Morais in "De pombos e de gatos"
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