No princípio era a palavra oral. Foi com ela que os humanos começaram a comunicar entre si e se constituíram como seres humanos. Mas, depois, eles criaram o artefacto da palavra escrita, que é uma forma de comunicação mais elaborada e duradoura. Sem poder perder a sua relação com a oralidade, e sendo um artefacto duradouro que aí fica, a linguagem escrita, mesmo independentemente dos conteúdos, que veicula, ela própria, por si mesma, é já um produto cultural onde se devem guardar memórias culturais. Este é, por exemplo, o caso de alguns vestígios de línguas anteriores que, muito embora já tenham caído em parcial desuso na oralidade, constituem um meio precioso para nos ajudar a reconhecer famílias de palavras da nossa língua, assim nos levando não só a escrevê-las correctamente, como ainda a captarmos de uma forma mais perfeita o seu significado. Por isso, quanto às assim denominadas ‘consoantes mudas’, em vez de lhes chamarmos ‘consoantes mudas’, chamemos-lhes ‘consoantes etimológicas’. Seriam ‘consoantes mudas’ se as olhássemos na perspectiva da oralidade, mas elas não são oralidade mas escrita. Conclui-se então que uma boa ortografia deve guiar-se por dois critérios, em compromisso um com o outro: o critério da pronúncia ou da oralidade, mas também o critério científico-etimológico. Assim, se é importante para uma correcta grafia o critério da pronúncia, não é menos relevante o critério científico-etimológico que pede para se escrever ‘fracção’ e não ‘fração’, ‘faccioso’ mas também ‘facção’, ‘factura’, ‘rubrica’ e não ‘rúbrica’, assim até corrigindo neste último caso a pronúncia.
João Reis in “Expresso” (Cartas)
Não sei o que mais aprecio no texto citado, da autoria do
leitor do "Expresso" João Reis: se o conteúdo, se o
estilo. Argumentação inteligente, bastante acima do nível dos mentores do
Acordo do desacordo, explanada em português de primeira, de que nos vamos
desabituando. Deus seja louvado! Ainda há quem saiba escrever português... em
Portugal!
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