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Imagine que diz a seguinte frase: "A casa da irmã do Rui". Agora
imagine que há uma língua que não consegue dizer isto assim, embora a expressão
seja muito simples. Como resolvem os falantes dessa língua o problema? Os
falantes dessa língua dizem: "O Rui tem uma irmã". "A irmã tem uma casa". Isto não
é anedota. Acontece na língua dos índios brasileiros Pirahã.
E sabem porque existe esta limitação na língua deles?
Porque não usa a recursão, ou não tem a propriedade da recursividade; conceitos
de cair de cauda, complicados e onde é difícil “meter o dente”, prontes. A
recursão é usada na Matemática, nas ciências da computação, e também na
linguagem. Não é exactamente a mesma coisa em cada um desses campos, mas anda
perto. Agora estamos a referir-nos ao uso na linguagem.
Uma ideia pode ser expressa de muitas maneiras. Por
exemplo, “O gato comeu o rato” serve para começar. É a ideia base, mas se
formos um bocado prolixos, no contexto em que o rato fez aquilo, diremos
talvez, “A Rita percebeu que o gato comeu o rato”. Contudo há gente complicada
e para ela isso é pouco e quer mais: “A Margarida viu a Rita admirada quando percebeu
que o gato comeu o rato”. Mas há ainda mais: blá, blá, blá.
Continuemos: “Todos os sábados de manhã, levanto-me cedo, porque não
sou pessoa de ficar muito tempo na cama, coisa que ninguém deve fazer, e saio
para ir à pesca, o meu passatempo preferido, especialmente desde que comprei
uma cana nova de fibra com carreto do Canadá e passei a pescar dúzias de peixes,
tantos que, quando chego a casa, a minha mulher tem de dar alguns à vizinha,
que fica toda contente, e mesmo assim, ainda andamos a comer peixe três dias, o
que não é nenhum mal, pois o peixe, dizem os nutricionistas, tem gordura muito
boa para a saúde e o que eu mais prezo é a saúde, muito mais que o dinheiro,
esse vil metal responsável por tanta desgraça, seja ele necessário ou não, em
minha opinião não, mas importante mesmo é a pesca, desporto repousante, blá,
blá, blá”. Aqui está o exemplo da recursividade. Muitas ideias recursivas metidas dentro
da mesma frase.
Dir-se-á que nem oito nem oitenta. É verdade. No meio
está a virtude e daí a importância da recursão no estilo literário. A estética,
ou arte, da escrita é grandemente dependente do bom uso da recursão.
Exemplifiquemos:
E desde esse dia, não o deixou mais. Se Carlos aparecia
no teatro, Dâmaso imediatamente arrancava-se da sua cadeira, às vezes na
solenidade duma bela ária, e pisando os botins dos cavalheiros, amarrotando a
compostura das damas, abalava, abria de estalo a claque, vinha-se instalar na
frisa, ao lado de Carlos, com a bochecha corada, camélia na casaca, exibindo os
botões de punho que eram duas enormes bolas. Uma ou duas vezes que Carlos
entrara casualmente no Grémio, Dâmaso abandonou logo a partida, indiferente à
indignação dos parceiros, para se vir colar à ilharga do Maia, oferecer-lhe
marrasquino ou charutos, segui-lo de sala em sala como um rafeiro. Numa dessas
ocasiões, tendo Carlos soltado um trivial gracejo, eis o Dâmaso rompendo em
risadas soluçantes, rebolando-se pelos sofás, com as mãos nas ilhargas, a
gritar que rebentava!
Assim escrevia Eça no romance “Os Maias”: recursão de
primeira água!
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domingo, 18 de março de 2012
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