Contra toda a lucidez, ainda dura uma polémica enviesada em volta do prefácio de Cavaco Silva ao seu Roteiros VI. Para os três ou quatro cidadãos que não repararam no assunto, lembro que no texto em causa o prof. Cavaco acusa o eng. Sócrates de "uma falta de lealdade institucional que ficará registada na história da nossa democracia". Porquê? Porque o eng. Sócrates anunciou ao país o PEC IV sem avisar previamente o Presidente da República, desfeita que, segundo o prof. Cavaco, obstou a que o Chefe do Estado exercesse "a sua magistratura de influência com vista a evitar o deflagrar de uma crise política".
Face a isto, há quem acuse o prof. Cavaco de interpretação deficiente da Constituição, quem o acuse de atacar pelas costas um sujeito que agora é um mero estudante parisiense e quem o acuse de omitir o episódio no momento em que o episódio deveria ter sido tornado público e implicado consequências.
O que acho espantoso é o facto de, na cabeça do prof. Cavaco, os erros do eng. Sócrates se resumirem a um capricho protocolar. Que o eng. Sócrates espatifasse o país a uma velocidade com que nem os seus desastrados antecessores sonharam não parece importar ao prof. Cavaco. Que os únicos instrumentos políticos do eng. Sócrates fossem a incompetência, o subterfúgio e a pura mentira não parece importar ao prof. Cavaco. Que o eng. Sócrates revelasse uma falta de lealdade histórica para com os cidadãos em geral não parece importar ao prof. Cavaco.
Não parece e realmente não importou, já que o Presidente assistiu à devastação com uma serenidade que talvez não chegasse a ser cúmplice mas decerto foi conveniente. E a conveniência era recíproca, na medida em que, pelos vistos, o maior receio do prof. Cavaco consistia na "crise política" que alegadamente tentou impedir ou, para falarmos com franqueza, na troca do eng. Sócrates por um governo do partido a que, queira ou não, o prof. Cavaco estará sempre associado. Se é assim, é grave: dificilmente um estadista a sério permitiria o regabofe liderado pelo eng. Sócrates e, o que é pior, continuaria, muitos meses depois, a lamentar o fim do regabofe.
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Alberto Gonçalves in "Diário de Notícias"
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