Quem tem pouco que fazer pode dar-se ao quase luxo—talvez
mesmo luxo—de pensar coisas esotéricas. É o meu caso! Por exemplo, pensar que os
valores morais, sociais, políticos e por aí fora, sempre mudaram com o tempo. Consequentemente,
os valores actuais também são provisórios e vão mudar. Serve esta conversa para
perguntar o que é hoje aceitável mas vai deixar de o ser dentro de 50 anos.
Provavelmente, milhares de coisas vão mudar, algumas de
todo insuspeitas no actual estado dos nossos encéfalos. Há uma que me põe os
neurónios frequentemente a bater válvulas, já referida várias vezes neste
espaço quase tão fértil intelectualmente como os discursos do Nóvoa: a predação
praticada pelo homem.
O Homo sapiens,
como é sabido, é um alarve—além de liquidar os irmãos peixes, aves, mamíferos, moluscos,
batráquios, répteis até, dá-se ao requinte de os criar com carinho para depois abater
sumariamente, usando doses variáveis de crueldade, para se empanturrar com bifes
do lombo, iscas de fígado, leitão assado, franguinho da Guia, dourada grelhada,
ou coxas de rã. Tal prática, tenho a certeza, vai ser considerada mais inaceitável,
insuportável, intolerável e maldita do que é hoje a antropofagia.
O caminho—está mais que visto—vai ser a produção in vitro de costeleta de borrego, orelha
de porco, bife do acém, lombinho de linguado e miolos de vaca; ou seja, em
grandes máquinas industriais donde sairão quilómetros de tais vitualhas para
enrolar em cilindros iguais aos dos cabos eléctricos e da fibra óptica.
Eventualmente, haverá distribuição doméstica canalizada,
à semelhança da actual distribuição de água, com contadores e tudo. O cidadão
chega a casa, tira o casaco e veste o roupão, calça as pantufas, lava as mãos, escolhe
o menu no catálogo do contador, pega no
prato, abre a torneira e serve-se à vontade, em função do apetite e da disponibilidade
financeira.
Dirão que a coisa é degenerescência civilizacional, mesmo
cultural. Talvez seja. Mas suspeito que o homem das cavernas, a cozinhar no fogo dos
cavacos à porta da toca, se ouvisse falar do que comemos agora, de como
cozinhamos e das nossas cozinhas, também ia achar o fenómeno degenerescência cultural.
Tudo é relativo—Einstein sempre!
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