segunda-feira, 17 de maio de 2010

BEM ESCREVER

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Na vida doméstica inglesa, a novela tornou-se um objecto de primeira necessidade como a flanela ou as fazendas de algodão; e, portanto, toda uma população de romancistas se emprega em manufacturar este artigo, por grosso, e tão depressa quanto a pena pode escrever, arremessando para o mercado as páginas mal secas no ansioso conflito da concorrência.
Mas a gula, a gulodice de livros de viagem é também considerável, e de resto bem explicável n'uma raça expansiva e peregrinante, com esquadras em todos os mares, colónias em todos os continentes, feitorias em todas as praias, missionários entre todos os bárbaros, e no fundo d'alma o sonho eterno, o sonho amado de refazer o Império Romano. Isto produziu um outro tipo de industrial das letras - o prosador viajante.
Antigamente contava-se a viagem quando casualmente se tinha viajado: o homem que visitava países longínquos, se achava em aventuras pitorescas, à volta, repousando ao canto do seu lume, tomava a pena e ia revivendo esses dias n'uma agradável rememoração de impressões e paisagens. Hoje não. Hoje empreende-se a viagem unicamente para se escrever o livro. Abre-se o mapa, escolhe-se um ponto do Universo bem selvagem, bem exótico, e parte-se para lá com uma resma de papel e um dicionário. E toda a questão está (como a concorrência é grande) em saber qual é o recanto da terra sobre que ainda se não publicou livro! Ou, quando o país é já toleravelmente conhecido, se não terá ainda alguma aldeola, algum afastado riacho sobre que se possam produzir trezentas páginas de prosa...
Quem hoje encontrar em algum intrincado ponto do Globo um sujeito de capacete de cortiça, lápis na mão, binóculo a tiracolo, não pense que é um explorador, um missionário, um sábio coligindo floras raras - é um prosador inglês preparando o seu volume.

Eça de Queirós in "Cartas de Inglaterra"
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