domingo, 30 de maio de 2010

ESCREVER E CRIAR

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[...] O serviço dos enterramentos era feito em Lisboa na mais perfeita paz. Católicos e não católicos eram levados para o cemitério municipal pelos seus respectivos padres ou simplesmente pelos seus amigos ou pelos seus parentes, e todos tinham o seu lugar na cidade dos mortos como o haviam tido na cidade dos vivos. Pendia apenas desse facto uma pequena questão canónica que o sr. patriarca de Lisboa resolveu do modo mais exemplarmente sensato, ordenando que, visto considerar-se o cemitério como uma instituição municipal, os párocos benzessem as sepulturas dos que desejassem repousar em terreno sagrado, e não benzessem as daqueles que se contentassem com uma modesta cova simplesmente civil. Não tinha jamais de intervir a polícia. O ministério do reino estava a esse respeito completamente sossegado em sua secretaria. Finalmente podia-se morrer em Lisboa só pelo gosto de ser tão tranquilamente enterrado.
Nisto o sr. presidente do conselho sobrevém na sua forma de hidra e determina em favor da morte católica a criação de um muro semelhante ao que o sr. Guillomin imaginou para abrigo da vida privada. A câmara municipal de Lisboa reune-se para dar cumprimento à portaria de s.ex.ª e discutir o modo de levantar o muro. Propõem-se a tal respeito vários alvitres sobre os quais predomina em última análise o do sr. dr. Jardim. [...]

[...] Nós supúnhamos que o característico religioso que distingue um católico dos membros de qualquer das outras cinco mil seitas religiosas que cobrem a superfície da terra era um facto dos domínios exclusivos da consciência: que esse carácter desaparecia no limiar do obscuro pórtico infinito onde pára a vida; que o cadáver deixava de ter uma religião, cessava de pertencer á igreja, para pertencer exclusivamente á química. Supúnhamos que o cemitério, considerado não só pelo seu lado civil mas mas principalmente ainda pela intenção do seu instituto cristão, era o campo sagrado do respeito, da tolerância, do esquecimento de toda a discrepância de ideias, de toda a ofensa, de toda a injúria, a mansão eterna do perdão e do amor para todos aqueles que padeceram na terra as amarguras comuns da grande humanidade coberta em toda a redondeza do orbe pela larga benção incondicional de Jesus.
Estávamos grosseiramente iludidos. O cemitério, o cemitério de Lisboa, pelo menos, o dos Prazeres ou o do Alto de S. João, é puramente um recinto de carácter oficial, destinado á fermentação exclusiva das podridões privilegiadas.
Um sr. conselheiro, por exemplo, que morre hidrópico na sua cama, bem ungido pela liberalidade amiga do seu cura, bem chapinhado em água benta pelo compadrio do seu prior, correcta e aparatosamente amortalhado, com as suas calças de galão de ouro duplamente retesadas pela inchação e pelas presilhas, com a sua farda vestida, a sua barba feita, a comenda no peito, o espadim ao lado, o chapéu armado aos pés, o cordão da ordem terceira de S. Francisco à cinta, vai legitimamente e no uso do mais sagrado direito para o cemitério, a esperar na morte a trombeta da ressurreição da carne, como esperou na vida a hora da sua repartição. No dia da chamada geral no vale de Josafat ele porá na cabeça o seu chapéu de bicos e irá tomar o competente lugar na glória eterna, na bancada dos conselheiros, à mão direita de Deus Padre Todo Poderoso.
Mas tu, miserável canalha, tu, concebido no monturo e dado à luz no cano do esgoto, tu que não conheceste pai nem mãe, produto espontâneo da grande imundice anónima, aparecido como a flor da febre à superfície do pântano, tu que não recebeste baptismo, nem confirmação, nem ordem, nem matrimónio, nenhum finalmente desses preciosos benefícios que abrem o céu e que a igreja confere por uma tarifa de preços superiores aos teus capitais, tu, não tinhas no cemitério de Lisboa senão um lugar usurpado, roubado indignamente ás pessoas de bem. [...]
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Ramalho Ortigão in "As Farpas"
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