sábado, 6 de agosto de 2011

CAMILO

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Altíssima é a missão do escritor, e a do romancista principalmente. O mestre Inácio da cartilha velha, amoldurada às necessidades do século, é o romancista. Mal hajam os sacerdotes das letras derrancadas que vendem peçonha em lindos cristais, e desfloram as almas em luxuriante florescência da sua Primavera. O mau romance tem afistulado as entranhas deste país. Não há fibra direita no coração da mulher que bebeu a morte, e — pior que a morte — algumas dezenas de galicismos no que por ai se escreve e copia. O anjo da inocência foge de certos livros, como os editores de certos autores. A candura virginal de uma menina de quinze anos é a cousa mais equívoca deste mundo, se a menina leu cousa em que os pedagogos do coração a ensinaram a conhecer-se, antes que a experiência a doutrinasse.
Para cúmulo de infortúnio, Portugal é um país onde se está lendo muito.
Acontece aos estômagos famintos, quando se lhes depara alimento bom ou mau, assimilarem-no com tamanha sofreguidão, que o encruamento do bolo, e o marasmo são inevitáveis. Assim e por igual teor, quando os Lucullos e Apicios das letras expõem à voracidade pública as suas iguarias estragadas, a fome de aprender a vida nos romances locupleta-se com tamanha intemperança, que o resultado é as dispepsias espirituais, tormento de angústias vomitivas, que fazem descer o coração ao lugar do estômago, e subir o estômago ao lugar do coração. [...]

Camilo Castelo Branco in “Anos de Prosa”
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