Todos os animais têm relógios biológicos incorporados cujo
mecanismo é constituído por genes, proteínas e cadeias de reacções bioquímicas
indutoras de ritmos fisiológicos. Tais ritmos são condicionados por variações físicas
cíclicas do ambiente de que a alternância do dia e da noite é a principal,
embora haja outras, como as estações do ano. Chamam-se circadianos aos ritmos
diários: envolvem secreções—como a do cortisol e da melotonina—e outras
funções, de que a mais importante será o sono ou, mais concretamente, a alternância do sono e da vigília.
Nos tempos de total, ou quase total, ausência de
iluminação artificial, o sono era uma função circadiana pura, condicionada pelo
nascer e pôr do Sol. Em boa verdade, em muitos períodos do ano o intervalo
entre os dois fenómenos é pequeno, ou seja, o dia é curto e a noite longa, com
duração muito superior à do sono necessário. Por isso, é pouco provável que o homem
dormisse alguma vez tanto tempo, numa única etapa. E, se não dormia numa única
etapa, como dormia? Provavelmente, faria o que hoje se chama de sono
segmentado, com dois períodos distintos antes da aurora, separados por um
interregno. Aliás, a constatação não será muito original, pois há expressões antigas com
ela relacionadas, como a do primeiro sono, ou premier
sommeil em França, primo sonno em Itália e qualquer coisa
parecida em chinês.
E que faziam os nossos antepassados no interregno entre
os dois sonos? É matéria misteriosa, mas defendem alguns que muitas vezes
fariam amor. Depois de dias cansativos de trabalho, cairiam na cama como pedras,
sem vagares para tais devaneios. Só depois do tal primeiro sono estariam com o
fitness exigido para a batalha conjugal. Não sei.
Falo nisto porque há testemunhos de gente que usa essas
horas a meio da noite a trabalhar, sobretudo em actividades criativas, como escrever,
planear, versejar, pintar e por aí fora.
A escritora escocesa Karen Emslise conta-nos que nesse
período escreve "de jacto", sem preocupações de estilo, sintaxe,
sequer de ortografia. Horas depois vai dormir outra vez. Segundo ela, o
interregno do sono segmentado é destinado à criação em exclusivo. A revisão e
edição dos textos é feita de dia, hora a que o cérebro está mais apto para esse
trabalho e menos voltado para a criação.
O arquitecto Frank Wright
acordava às 4 horas, trabalhava três ou quatro e dormia depois um soneca; o
escritor Knut Hamsun, Prémio Nobel da Literatura, dormia com papel e
lápis à cabeceira, escrevia algumas horas a meio da noite e aconselhava a
começar a escrever mesmo às escuras quando a ideia nascia; e a escritora Marilynne Robinson também
trabalhava regularmente a meio da noite durante o que chamava insónia
benevolente.
Sabe-se que o nível sérico da prolactina aumenta durante
o sono e tem influência na qualidade dos sonhos. É bem possível que seja esse o
segredo da insónia benevolente—a transformação da vida num sonho.
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