sexta-feira, 7 de novembro de 2014

CRIAR É SONHAR

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Todos os animais têm relógios biológicos incorporados cujo mecanismo é constituído por genes, proteínas e cadeias de reacções bioquímicas indutoras de ritmos fisiológicos. Tais ritmos são condicionados por variações físicas cíclicas do ambiente de que a alternância do dia e da noite é a principal, embora haja outras, como as estações do ano. Chamam-se circadianos aos ritmos diários: envolvem secreções—como a do cortisol e da melotonina—e outras funções, de que a mais importante será o sono ou, mais concretamente,  a alternância do sono e da vigília.
Nos tempos de total, ou quase total, ausência de iluminação artificial, o sono era uma função circadiana pura, condicionada pelo nascer e pôr do Sol. Em boa verdade, em muitos períodos do ano o intervalo entre os dois fenómenos é pequeno, ou seja, o dia é curto e a noite longa, com duração muito superior à do sono necessário. Por isso, é pouco provável que o homem dormisse alguma vez tanto tempo, numa única etapa. E, se não dormia numa única etapa, como dormia? Provavelmente, faria o que hoje se chama de sono segmentado, com dois períodos distintos antes da aurora, separados por um interregno. Aliás, a constatação não será muito original, pois há expressões antigas com ela relacionadas, como a do primeiro sono, ou premier sommeil em França, primo sonno em Itália e qualquer coisa parecida em chinês.
E que faziam os nossos antepassados no interregno entre os dois sonos? É matéria misteriosa, mas defendem alguns que muitas vezes fariam amor. Depois de dias cansativos de trabalho, cairiam na cama como pedras, sem vagares para tais devaneios. Só depois do tal primeiro sono estariam com o fitness exigido para a batalha conjugal. Não sei.
Falo nisto porque há testemunhos de gente que usa essas horas a meio da noite a trabalhar, sobretudo em actividades criativas, como escrever, planear, versejar, pintar e por aí fora.
A escritora escocesa Karen Emslise conta-nos que nesse período escreve "de jacto", sem preocupações de estilo, sintaxe, sequer de ortografia. Horas depois vai dormir outra vez. Segundo ela, o interregno do sono segmentado é destinado à criação em exclusivo. A revisão e edição dos textos é feita de dia, hora a que o cérebro está mais apto para esse trabalho e menos voltado para a criação.
O arquitecto Frank Wright acordava às 4 horas, trabalhava três ou quatro e dormia depois um soneca; o escritor Knut Hamsun, Prémio Nobel da Literatura, dormia com papel e lápis à cabeceira, escrevia algumas horas a meio da noite e aconselhava a começar a escrever mesmo às escuras quando a ideia nascia; e a escritora Marilynne Robinson também trabalhava regularmente a meio da noite durante o que chamava insónia benevolente.
Sabe-se que o nível sérico da prolactina aumenta durante o sono e tem influência na qualidade dos sonhos. É bem possível que seja esse o segredo da insónia benevolente—a transformação da vida num sonho.
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