sábado, 30 de maio de 2015

SER PINÓQUIO

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Mentir é dizer o que não é verdade, o que não se pensa, enganar, não cumprir o prometido, blá, blá, blá. Todos sabemos o que é mentir sem ir ao dicionário. Sabemos talvez melhor que o dicionário, embora ele, às vezes, também minta. A ideia agora não é apurar isso, mas antes considerar o lado ético da mentira.
Comece-se por constatar que a mentira está muito mal vista. Já vem da Bíblia o labéu: "Não dirás falso testemunho contra o teu próximo"; "Os lábios mentirosos são abomináveis ao Senhor, mas os que praticam a verdade são o seu deleite"; "O que profere mentiras não estará firme perante os meus olhos", e por aí fora. Não sou grande especialista em estudos bíblicos (nem grande nem pequeno), mas é fácil perceber que a mentira é uma das preocupações do texto, vista como falha ética grave.
Em boa verdade, não estou completamente de acordo porque há casos e casos. Não se pode dizer à puérpera, orgulhosa do filho recém-nascido, que a criança é um horror, mesmo que seja mais feia que Robert Mugabe; nem dizer a uma jornalista que cheira mal porque não toma banho, mesmo sendo essa a circunstância. Mas esses são casos limite e, por isso, vou contar uma história.
A mãe duma jornalista americana tinha 96 anos, estava praticamente cega—só distinguia vagamente a claridade da escuridão—e vivia sozinha, longe dos filhos, residentes em Brooklyn. Um dia a filha disse-lhe que ela devia mudar-se também para Brooklyn e a senhora aceitou ir mas queria um apartamento com vista para o mar. O problema era fácil de resolver, pois podia ser instalada numa água furtada com vista para um qualquer saguão, bastando que, quando os filhos a visitassem, lhe falassem dos barquinhos a passar, nas enormes ondas desse dia, na actividade dos salva-vidas e outras endrominices que tais.
A filha ficou presa num dos maiores dilemas da sua vida e, alguns dias depois, disse-lhe que não podia suportar a despesa de um apartamento com vista para o mar. A velhota sorriu e disse: Não tem importância—de qualquer maneira, estou cega... Ficou tudo resolvido com um apartamento qualquer.
Para que serve esta história? Serve para mostrar que a mentira tem muitas facetas. Diz-se, por exemplo que há mentiras piedosas—e talvez haja—mas quando são elas virtude? A filha desta senhora ia passar o resto da vida dela com o problema daquela mentira, sem necessidade, e fazia-o, aparentemente, por uma boa causa, afinal inútil. E quantas mentiras há que, sendo-o, não aquecem nem arrefecem. É o fulano que diz ter um casarão na província quando tem uma palhota, ou que foi campeão de bisca 5 anos seguidos em Alguidares-de-Baixo, ou que o pai teve um hotel de 5 estrelas em Piccadilly Circus antes da II Guerra, ou que a mãe fazia todos os vestidos para a princesa Soraya, mulher do Xá da Pérsia. É uma necessidade psicológica para alguns se aliviarem, da mesma maneira que têm de ir periodicamente à retrete; com a vantagem do alívio mentiroso não produzir mau cheiro—é inodoro.
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