sábado, 24 de abril de 2010

LIVRO É SÍMBOLO


Tenho a convicção de que o livro é um instrumento em extinção do estrito ponto de vista material, vítima dos novos suportes da escrita; eventualmente, nem sempre mais eficazes, mas do lado da moda e com algumas vantagens de funcionalidade acrescida. O livro não é no presente o objecto com ideias, mas antes a ideia das ideias compiladas, ordenadas e arquivadas. O termo passou a ter outro significado, adquiriu nova nuance. Por isso, o texto de Jorge Luís Borges, que se transcreve de seguida, é de todo actual, se visto por este prisma. Em boa verdade, nos tempos que correm, a Biblioteca de Alexandria podia ser metida no 3º-Dt do prédio 57 da Travessa do Fala-Só. Muda a forma, mas salva-se o conteúdo. Perde-se o objecto, o que é triste, mas preserva-se o símbolo.

Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.
Em «César e Cleópatra» de Shaw, quando se fala da Biblioteca de Alexandria, diz-se que ela é a memória da humanidade. O livro é isso e também algo mais: a imaginação. Pois o que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado? Tal é a função que o livro realiza.
(...) Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. Por isso convém manter o culto do livro. O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.


Jorge Luís Borges, in 'Ensaio: O Livro'
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