Há diversas definições de literatura, mas acho que se pode dizer simplesmente ser a arte de criar textos. Eça está para o jornalista noticioso como van Gogh está para o pintor de paredes. Ambos usam a mesma ferramenta, mas o objectivo e resultado são diferentes. Por isso se pode tomar um texto literário avulso e recrearmo-nos com a leitura dum excerto sem conhecer o contexto. Tal não faz sentido com a peça noticiosa do jornal.
O ritmo, a originalidade da expressão, a genialidade da comparação, ou o brilho do elogio ou insulto fazem a obra de arte. Lê-se um naco do romance como se ouve parte do andamento da sinfonia. O texto de Camilo a seguir transcrito sugeriu-me este comentário e documenta o que acabo de dizer.
Deixa-me dizer-te francamente o juízo que eu formo do homem transcendente em génio, em estro, em fogo, em originalidade, finalmente em tudo isso que se inveja, que se ama, e que se detesta, muitas vezes. O homem de talento é sempre um mau homem. Alguns conheço eu que o mundo proclama virtuosos e sábios. Deixá-los proclamar. O talento não é sabedoria. Sabedoria é o trabalho incessante do espírito sobre a ciência. O talento é a vibração convulsiva de espírito, a originalidade inventiva e rebelde à autoridade, a viagem extática pelas regiões incógnitas da ideia. Agostinho, Fénelon, Madame de Staël e Bentham são sabedorias. Lutero, Ninon de Lenclos, Voltaire e Byron são talentos. [...]
[...] Lembra-me ouvir dizer a um doido que sofria por ter talento. Pedi-lhe as circunstâncias do seu martírio sublime, e respondeu-me o seguinte com a mais profunda convicção, e a mais tocante solenidade filosófica: os talentos são raros, e os estúpidos são muitos. Os estúpidos guerreiam barbaramente o talento: são os vândalos do mundo espiritual. O talento não tem partido nesta peleja desigual. Foge, dispara na retirada um tiroteio de sarcasmos pungentes, e, por fim, isola-se, segrega-se do contacto do mundo, e curte em silêncio aquele fel de vingança, que, mais cedo ou mais tarde, cospe na cara de algum inimigo, que encontra desviado do corpo do exército. Aí tem a razão por que o homem de talento é perigoso na sociedade. O ódio inspira-lhe a eloquência da traição. [...]
Camilo Castelo Branco, in 'Coisas que Só eu Sei'
O ritmo, a originalidade da expressão, a genialidade da comparação, ou o brilho do elogio ou insulto fazem a obra de arte. Lê-se um naco do romance como se ouve parte do andamento da sinfonia. O texto de Camilo a seguir transcrito sugeriu-me este comentário e documenta o que acabo de dizer.
Deixa-me dizer-te francamente o juízo que eu formo do homem transcendente em génio, em estro, em fogo, em originalidade, finalmente em tudo isso que se inveja, que se ama, e que se detesta, muitas vezes. O homem de talento é sempre um mau homem. Alguns conheço eu que o mundo proclama virtuosos e sábios. Deixá-los proclamar. O talento não é sabedoria. Sabedoria é o trabalho incessante do espírito sobre a ciência. O talento é a vibração convulsiva de espírito, a originalidade inventiva e rebelde à autoridade, a viagem extática pelas regiões incógnitas da ideia. Agostinho, Fénelon, Madame de Staël e Bentham são sabedorias. Lutero, Ninon de Lenclos, Voltaire e Byron são talentos. [...]
[...] Lembra-me ouvir dizer a um doido que sofria por ter talento. Pedi-lhe as circunstâncias do seu martírio sublime, e respondeu-me o seguinte com a mais profunda convicção, e a mais tocante solenidade filosófica: os talentos são raros, e os estúpidos são muitos. Os estúpidos guerreiam barbaramente o talento: são os vândalos do mundo espiritual. O talento não tem partido nesta peleja desigual. Foge, dispara na retirada um tiroteio de sarcasmos pungentes, e, por fim, isola-se, segrega-se do contacto do mundo, e curte em silêncio aquele fel de vingança, que, mais cedo ou mais tarde, cospe na cara de algum inimigo, que encontra desviado do corpo do exército. Aí tem a razão por que o homem de talento é perigoso na sociedade. O ódio inspira-lhe a eloquência da traição. [...]
Camilo Castelo Branco, in 'Coisas que Só eu Sei'
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