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Em Sagres reunira o infante todos os recursos de que então dispunham a cosmografia e a arte de navegar. D. Pedro trouxera-lhe das suas viagens o manuscrito das peregrinações de Marco Paulo. Esses livros, os mapas de Valseca, as narrativas e roteiros dos pilotos, as rudes cartas marítimas, faziam vergar as mesas, a que o infante, tendo ao lado o seu cosmógrafo, Jayme de Mayorca, então célebre, rodeado de discípulos, passava os dias a discorrer, as noites a interrogar, silenciosamente, os enigmas propostos nos textos e desenhos. Como Raymundo Lullio, entre as drogas e retortas do seu laboratório se extenuava a buscar o princípio da vida, os corpos simples ou elementares da matéria para obter o segredo da existência física e orgânica: assim o infante procurava desvendar os segredos das ilhas e dos continentes, dos golfos e enseadas, velados pelo manto azul-negro do Mar Tenebroso.
Essa paixão naturalista da Renascença nos seus primeiros tempos, essa tenaz curiosidade científica, diferia essencialmente do misticismo religioso da Idade-Média, eivado de fantasias cabalísticas, e da ingenuidade das mitogenias primitivas. O homem já preferia a ciência à imaginação: rejeitava as fábulas, e confiava tudo aos processos e aos meios positivos. «Ora manifesto é, diz, um século depois, Pedro Nunes, que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar; mas partiam os nossos mareantes mui ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e geografia, que são as cousas de que os cosmógrafos hão de andar apercebidos. Levavam cartas mui particularmente rumadas, e não já as que os antigos usavam, que não tinham mais figurados que doze ventos, e navegavam sem agulha.» A bússola, o astrolábio e o quadrante já guiavam as expedições marítimas enviadas anualmente de Sagres pelo infante, a sondar o Oceano, ou a descer a costa para o sul. Porto Santo, a Madeira e os Açores foram por esta forma arrancadas às trevas do mar. Mas, apesar das sucessivas investidas, não se conseguira ainda dobrar o cabo Bojador, limite extremo até onde a costa era conhecida: havia doze anos que os navios iam e voltavam sem resultado. Era uma barreira natural, junta a um muro de terrores fantásticos.
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Oliveira Martins in “História de Portugal”
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