segunda-feira, 17 de novembro de 2014

FISIOLOGIA VS ONTOLOGIA

.

Há uma história filosófica—que em tempos já contei—acerca de um automóvel. João tinha um carro velho e todas as semanas ia à oficina repará-lo, substituindo peças. António, o mecânico, consertava e guardava as peças velhas. Ao fim de alguns anos, o carro do João não tinha nenhuma peça de origem. António acabou por reconstruir o automóvel com as peças velhas consertadas. A pergunta é: qual o carro original? É o do mecânico António, naturalmente, embora João seja o detentor dos seus documentos de registo e propriedade.
A que propósito vem esta laracha?—perguntar-se-á. Acontece que quando nascemos somos detentores de um património de células constituídas por milhões de átomos: ≈ 7x 10^27. Em poucos anos, todas essas estruturas foram substituídas por outras e o fenómeno repete-se ao longo da vida muitas vezes. Isto é, além da personagem original, somos uma série enorme de personagens diferentes. Quando morremos, não temos nenhum dos átomos originais, podendo ocorrer uma coincidência extraordinária apenas com alguns que voltam. Somos outros? Parece que não. Porquê?
O segredo está na mente, dizem—resiste e dá-nos unidade, admite-se. Sendo assim, no fundo o que nos caracterizará não é a morfologia, mas a função, neste caso a cerebral. A individualidade é um conjunto de memórias.
E os doentes afectados por perturbações da memória? Sentem-se outros? Não: pessoas que perderam grande parte da memória—amnésia retrógrada—embora com enormes lacunas sobre as suas vidas, mantêm o sentido do eu.
É aqui que entra a parte ontológica do problema. Para quem acha que o descrito não tem solução racional, resta a alma, entidade não orgânica que confere identidade na vida e mesmo depois da morte. A fé é uma crença que não se demonstra; só se sente. E resolve muitos problemas.
.

Sem comentários:

Enviar um comentário