quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A FIABILIDADE DO RECORTE LITERÁRIO

No início do romance "Anna Karenina", Tolstoi afirma que as famílias felizes são todas parecidas entre si e as infelizes são infelizes à sua própria maneira. Vladimir Nabokov, no "Ada", tinha outra opinião: todas as famílias felizes são mais ou menos diferentes, todas as famílias infelizes são mais ou menos parecidas.
Pedindo desculpa por participar nesta discórdia entre gente tão ilustre, acho que todas as famílias felizes são diferentes e todas as famílias infelizes são também diferentes. É inegável que, individualmente, há maneiras diferentes de ser feliz ou infeliz. É dos livros porque, se ninguém é igual a ninguém, porque o seria na felicidade ou na infelicidade? E a qualidade daquela, ou desta, mesmo não sendo um simples somatório de estados de espírito individuais na família, também não pode ser a mesma. Como aceitar que a interacção de personalidades diferentes conduza sempre a um resultado padrão?
É complicado fazer jogos com palavras, especialmente quando exprimem sentimentos. Tolstoi sabia-o e Nabokov também. Mas a arte literária sacrifica o rigor, em nome do ritmo da prosa, ou do imprevisto da ideia, da originalidade, ou do impacto que produz no leitor.
Tomemos um exemplo. Vejamos a seguinte frase de James O’Donnell: Afinal de contas, começámos nas savanas de África, a tentar correr suficientemente depressa para apanhar as coisas que podíamos comer e fugir das que nos podiam comer. A frase tem ritmo, embora prejudicada pela tradução; fala de uma situação imprevista, porque esquecida, da vida passada do homem; é original, ao contemplar simultaneamente a qualidade humana de predador e vítima da predação; e produz impacto no leitor do Século XXI, ao ser confrontado com a triste figura do seu antepassado.
Mas não é verdadeira. Não começámos assim, porque outros estados da evolução já tinham ocorrido antes; na fase africana do desenvolvimento da humanidade, os hominídeos pouco corriam, se é que o faziam; ainda fugiam dos predadores trepando às árvores; e a sua alimentação não fugia a correr, seguramente, porque era predominantemente vegetal.
Ninguém espera que uma pintura seja a reprodução fiel do que quer que seja, excepto os admiradores do realismo (que estão no seu direito). O escritor também não está obrigado a ser correcto em matéria científica, psicológica, ou sociológica. Pelo menos não devemos tomá-lo como tal, por maior respeito que nos mereça a sua obra. Aprecie-se a prosa, o enredo, a caracterização das personagens, que em inglês até se chamam characters, a eventual mensagem contida no texto, e pouco mais. Afinal, há familias felizes e infelizes e são todas diferentes.

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