sexta-feira, 1 de abril de 2011

A ARTE DE PROSAR

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O indivíduo não é só a alma; o corpo que a reveste, a serve, e tantas vezes a domina, é mais que sujeito a contínuas e espantosas variações; renova-se incessantemente, perecendo e renascendo a cada instante; a sua carne de hoje era ainda ontem vegetais, ruminantes, aves, peixes, água nas fontes, gases na atmosfera, calórico no sol, terra debaixo dos pés, e electricidade sabe Deus por onde; congregaram-se essas miríades de partículas... existiu; amanhã partirão, todas elas destacadas para novas combinações e destinos, sem que o espírito lhes haja sentido a fuga, porque outras partículas, acorridas do universo, terão vindo rendê-las sem estrondo nem abalo.
Neste sentido cada indivíduo é simultaneamente filho, irmão, e pai, influidor e influído, conservador, destruidor, modificador, herdeiro, usufrutuário, e testador, de quantos entes sensitivos, vegetativos, inorgânicos, imperceptíveis, imponderáveis, são, como ele, parcelas componentes do planeta em que ele se proclama senhor e potentado.
Mas se esta desidentificação incessante do corpo escapa às nossas percepções, por não apresentar de hora para hora mudanças apreciáveis no ser, no sentir, e no pensar, já assim não é quando nos outros, e em nós mesmos, confrontamos a infância com a puerícia, a puerícia com a adolescência, a adolescência com a virilidade, a virilidade com a velhice, a velhice com a decrepidez; ou, suprimindo os graus intermédios para maior evidência, a caducidade com a madureza, a madureza com o desabrochar no berço.
Que há aí de comum?!
Unicamente o nome, acidente impessoal, insignificativo, nulo.

António Feliciano de Castilho in “A Chave do Enigma”
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