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Era uma vez um velho burro. Fora madraço e manhoso. Não conquistara amigos porque os não merecia. Tinham-no lançado à margem no fim da vida. Principiou a viver ao acaso, pelos montes. Um dia achava-se defronte de um valado, estacado ao sol sobre as suas quatro patas, inerte, imóvel, olhando para um cardo seco com os seus grandes olhos redondos e encovados em órbitas esqueléticas, pensando nas vicissitudes da vida e procurando arrancar do seu cérebro, para se consolar, algumas ideias filosóficas.
Passou por ele e deteve-se a contemplá-lo um jovem asno, no viço das ilusões, cheio de amor e de zurros, de alegria e de coices. A vetusta ossada angulosa do ancião parecia furar-lhe a pele ressequida e áspera. Um espesso enxame de moscas cobria-lhe as mataduras do lombo e dava-lhe o aspecto de ter um albardão feito de zumbidos e de asas sobre um fundo de missangas pretas e palpitantes, — coisa rabujosa à vista.
— Sacode esse mosqueiro, disse-lhe o burro novo. Dar-se-á o caso de que, à semelhança do homem, deixasses também tu atrofiar o precioso músculo que aí tens na face para por meio dele abanares a orelha e moveres a pele?... Sacode-te, bestiaga!
Ao que o lazarento, pausado, retorquiu:
— Não sabes o que zurras, jovem temerário! O destino de quem tem mazelas é que o mosqueiro o cubra. As moscas que tu vês, e de que o meu cerro é a estalagem com mesa redonda, são moscas fartas, têm a mansidão abundante dos estômagos cheios. Se eu as sacudisse, viriam outras, — as famintas, de ferrões gulosos, que zinem como frechas, pousam como cáusticos, mordem como furúnculos. As que tu vês prestam-me um serviço impagável: —livram-me das que podem vir; são o meu xairel benigno e suave, o meu arnez, a minha couraça. Quando te chegar a idade de seres pasto de moscas (e breve te soará essa hora porque a mocidade é, como a erva, uma efémera transição entre o alfobre da meninice e a palha da idade madura); quando te chegar o teu dia, lembra-te, asninho imprudente, deste conselho amigo de um burro velho, que não aprende línguas, mas que tem a experiência que vale tanto como o ouro: Nunca sacudas mosca desde que criares mazela! Teme-te dos papos vazios das revoadas novas. Papos cheios não só não mordem mas até empacham! Compreendeste, burrinho, a filosofia da minha inércia?
Ramalho Ortigão in “As Farpas”, Janeiro/Fevereiro 1877
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