Oliveira Martins é um historiador de deslumbrar. Mais
extraordinário que o saber, só seu o estilo. Na página 111 da
sétima edição da "História de Portugal", pode ler-se o seguinte
trecho, exemplo do que digo.
A situação do clero católico no seio da primitiva sociedade portuguesa—e das coevas em geral—resulta de um tal
concurso de elementos heterogéneos,
que nenhuma das faces do sistema dos
costumes retrata, melhor do que esta, a confusão caótica desse novo mundo que se formava sobre
as ruínas e destroços do antigo.
Politicamente, o facto de um poder, superior por ter um fundamento
transcendente, estranho ao poder civil, é a primeira causa de conflitos. Perante
a Igreja, todos são igualmente súbditos, desde o rei até ao ínfimo dos viliores. A base religiosa desse poder consolida-se com a força que dá a riqueza. Os
barões, crendo de facto na verdade da revelação, e numa outra vida onde hão-de ser
julgados, têm uma religião feita
de medo; e como no fundo são bárbaros, vivem na terra à lei da força, remindo com esmolas e legados, à hora da morte,
os longos rosários de crimes. Julgando-se próximos a aparecer perante o supremo juiz, reconhecendo à hora da morte a inutilidade da força
e da perfídia perante quem tudo pode e
tudo vê, compram o perdão com o fruto
das rapinas e dos crimes; e assim formam o alicerce de um poder real,
verdadeiro e mundano. Salvos os mortos, os que ficam têm de entender-se com o clero herdeiro;
têm de debater por todos os
meios a influência e o poder,
para outra vez, à hora da morte, repetirem
os actos causadores das lutas que lhes
encheram a vida. Por tal forma se encerra um círculo vicioso que a politica não pode romper, porque a religião o não consente. Desde que as raças
germânicas, avassalando o império
antigo, não tinham podido desenvolver a sua independência religiosa e
aceitaram o cristianismo, força
era que assim fosse, enquanto os
dogmas cristãos governassem as consciências.
[...]
Não cabe mais
neste espaço, mas a prosa continua com o mesmo brilho. Faz bem lê-lo
periodicamente —por isso o recordo; e porque vale a pena pensar no que aqui diz.
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