Qual a diferença entre um sem-abrigo que diz falar com Deus e um santo que diz a mesma coisa? Assim começa um artigo, do "The Atlantic", sobre o pensamento de Andrew Scull, autor do recente livro Madness in Civilization: A Cultural History of Insanity. E logo a seguir, Scull recorda o ateu Bertrand Russell quando dizia: "Do ponto de vista científico, não se pode distinguir entre o homem que come pouco e vê o Paraíso e o que bebe muito e vê serpentes".
Todo o livro de Scull é, afinal, a análise da evolução do conceito de loucura ao longo dos séculos, desde castigo divino ou influência de Satanás, até doença da mente explicada em muitos casos por alterações morfológicas e funcionais hoje identificadas.
A dado passo, diz Scull: "A influência de Deus ou Satanás era explicação suficiente para todo o tipo de fenómenos, desde as chamadas possessões, até às visões supostamente experimentadas por Catarina de Siena ou Teresa de Ávila. Hoje, quem descodifica tais fenómenos são psiquiatras, não sacerdotes.
Ser profeta bíblico não é prova bastante para refutar acusações de insanidade, diz. Saul, por exemplo, foi visto temporariamente como profeta e mais tarde como "não batendo bem da cabeça", sendo isso atribuído a castigo divino.
Só no Século XIX as coisas começam a modificar-se na Europa. O neurologista francês Jean-Martin Charcot, por exemplo, terá sido dos primeiros a tomar consciência da realidade, afirmando—talvez com algum exagero—que todos os santos eram histéricos, experimentando visões místicas, nada mais que manifestações do foro da patologia.
Com surpresa de alguns, o Papa Francisco fala frequentemente da influência de Satanás e, no último Verão, reconheceu oficialmente a Associação Internacional de Exorcistas, pequeno grupo de 250 padres que ainda praticam actos de expulsão do demónio em pessoas ditas possessas.
Não comento as opiniões formuladas no referido artigo que pode ser lido aqui, no original. Mas parece-me que a obstinação em não pôr de lado determinadas tradições da Igreja—chamemos-lhes assim—não contribui nada para a sua sobrevivência social no mundo moderno. Digo eu.
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