[...] E não seria à toa que, a mais de tratar-se de um bicho
contemplativo, é a vaca uma legítima força da natureza - e de compreensão mais
sutil que a galinha, por isso que nela intervêm elementos espirituais
autênticos, como a meditação filosófica e o comportamento plástico. De fato, o
que é um campo sem vacas senão mera paisagem? Colocai nele uma vaca e logo
tereis, dentro de concepções e cores diversas, um Portinari ou um Segall. A
"humanização" é imediata: como que se cria uma ternura ambiente. Porque
doces são as vacas em seu constante ruminar, em sua santa paciência e em seu
jeito de olhar para trás, golpeando o ar com o rabo. Bichos fadados, pela própria qualidade de sua matéria, à morte violenta, impressiona-me
nelas a atitude em face da vida. São generosas, pois vivem de dar, e dão tudo o
que têm, sem maiores queixas que as do trespasse, transformando -se num número
impressionante de utilidades, como alimentos, adubos, botões, bolsas, palitos,
sapatos, pentes e até tapetes - pelegos - como andou em moda. Por isso sou
contra o uso de seu nome como insulto. Considero essa impropriedade um atentado
à memória de todas as galinhas e vacas que morreram para servir ao homem. Só o
leite e o ovo seriam motivo suficiente para se lhes erguer estátua em praça
pública. Nunca ninguém fez mais pelo povo que uma simples vaca que lhe dá seu
leite e sua carne, ou uma galinha que lhe dá seu ovo. E se o povo não pode
tomar leite e comer carne e ovos diariamente, como deveria, culpe-se antes os
governos, que não os sabem repartir como de direito. [...]
Vinicius de Moraes in "Do Amor aos Bichos"
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